Pela humanidade fazemos política para mudar o mundo
Há um consenso, que se percebe em todos os momentos, de que a sociedade brasileira está dividida. O diagnóstico assume formas diferentes de avaliação. Para alguns, trata-se de formas inconciliáveis de consideração da crise, com os defensores do golpe de um lado e os partidários da institucionalidade, por outro. Há ainda os que veem na cisão um apelo a formas de retomada do diálogo, a partir de algumas referências comuns, como a defesa da democracia. Por fim, não se deve deixar de considerar aqueles que têm na luta de classes sua explicação mais abrangente da divisão social.
O primeiro grupo está mergulhado na conjuntura imediata, com tudo de apaixonado que ela carrega. A segunda turma mira no dia seguinte, numa perspectiva de médio prazo, pensando na continuidade da vida a partir dos resultados do processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff. A terceira via, a partir de uma consideração filosófica e política mais alongada no tempo, tenta ler a realidade a partir de seu conflito de base, que se expressa no cotidiano, mas carrega motivações mais abrangentes.
São três visões do corte que estilhaça a sociedade, com três tempos diferentes e três perspectivas de ação: a divisão, o pacto e a luta de classes. O que surpreende não é a distância entre elas, mas sua simultaneidade no duro momento que atravessamos.
A polarização mais sentida e imediata, que se traduz também nas expressões violentas e odiosas do conflito, coloca em campos distintos os defensores do mandato presidencial conferido pelas urnas e os partidários do impedimento sem amparo na lei. A construção desses dois universos foi sendo tecida em torno de um confronto que impede o diálogo. Os meios de comunicação, com sua estratégia claramente golpista, reescreveram a legitimidade das instituições envolvidas a partir de seus interesses. Primeiro desacreditaram a política, depois politizaram a Justiça. O resultado foi a defesa de uma cultura de antagonismo, tão perigosa quanto imprevisível. No cotidiano da sociedade, cores e nomes passaram a significar anátemas, símbolos de raiva, incentivo à anulação do outro.
No patamar seguinte, depois da divisão sentida como uma corrente de ódio, surgem as tentativas de compreensão da crise a partir da busca pela repactuação possível. Nesse nível, as diferenças continuam a ser expressivas, tanto em política quanto em economia – sem falar das distinções em termos éticos e filosóficos –, mas se percebe um impulso em direção a um momento de diálogo. A democracia, que sofre um abalo sério na lógica da divisão extrema, surge como possibilidade de fazer conviver as diferenças.
Não se trata, como no modelo anterior, de matar o outro para ficar com todo o ar respirável, mas de exercitar o jogo em que todos perdem um pouco para que o conjunto se torne viável. Numa guerra de exércitos irascíveis, o campo de batalha se forra de corpos em que a coragem se torna matéria morta. Num conflito fundado na capacidade de negociação, o orgulho cede lugar ao possível. Os mortos não conversam. Conciliar é atributo de humildes e único destino possível de moribundos.
O terceiro degrau de nossos conflitos aponta para a luta de classes. Nesse patamar, há uma oposição mais radical, um horizonte de visões de mundo que não se conectam, um motor imóvel que dá sentido a toda a dinâmica social. De um lado a posse dos meios de produção (real e simbólica), de outro o trabalho explorado, despossuído de valor criador. Para uns poucos, o esforço em manter a exploração como caução da desigualdade, para a maioria, a construção de um horizonte que postule a convivência real entre a liberdade e a igualdade. A luta de classes não se dissolve no diálogo de desiguais, antes se afirma na identidade de cada uma das essências. Burguês é burguês, trabalhador é trabalhador.
Precisamos aprender com as divisões que vivemos hoje na pele, que somos feitos do presente, mas devemos reagir às provocações do real de forma altiva, libertária, criativa, democrática e indignada.
A divisão, por mais marcada que seja de visões particulares, nos impõe o respeito à verdade. Mesmo no campo crispado da disputa é preciso que haja um nível inegociável de universalidade. O ódio é sempre o reverso da lei.
É ainda necessário que as forças morais convoquem ao diálogo, que preserve as vias de solução das crises sem que seja necessário anular o outro em nome de interesses de poucos. O pacto é sempre um exercício de negociação.
Por fim, temos de compreender que há um terreno no qual as diferenças se expressam como identidade, e que é preciso avançar até o limite da consciência de cada grupo que constitui a sociedade. A luta de classes não é um desvio, mas a rota.
No dia a dia da vida real altercamos esses três modos de ser. Por vezes não nos reconhecemos no outro, e odiamos. Em outros momentos buscamos laços possíveis de troca, e negociamos. No fundo da nossa consciência, compreendemos a força que nega a humanidade do homem, e fazemos política para mudar o mundo.
Há situações em que não somos capazes nem de dar olhar o espelho. Este deve ser um bom momento para começar uma revolução.
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