Temer quer a desmontagem de toda a estrutura de solidariedade social
Michel Temer não é Michel Temer. Dilma Rousseff, por exemplo, tem certeza que ele é Eduardo Cunha. Para outros, o conspirador-mor é apenas uma fachada anódina, que chama a atenção pela embalagem convencional, enquanto se opera à sua sombra contra o país. E há ainda aqueles que vão na direção contrária, enfatizando um poder que ele não tem – um articulador que nunca foi além de interesses de varejo. Um homem capaz de inaugurar sua marca num dos períodos mais sensíveis da história recente demitindo um garçom.
As ações de Temer em relação à Dilma, em sua mesquinhez continuada, têm sentido nitidamente vingativo e invejoso. Ele não quer apenas o lugar dela, quer que ela não tenha lugar; que não saia de casa e que sua casa não seja um lugar bom para se viver. Em alguns momentos a psicologia é condutora da política. Mais que evidenciar confrontos ideológicos, as atitudes tomadas expressam o funcionamento de um sistema de valores, uma escala moral, a régua que serve para medir desde os atos pessoais até as decisões políticas. Perseguir é teimosia de fracos. Se aferrar a detalhes apanágio de medíocres. Esse é o caráter de nosso personagem.
No entanto, é preciso sempre atenção. A direita pode ser rancorosa, mas não é inepta, ou não estaria onde está. O que Temer exercita em comportamentos apequenados pode, talvez, servir de biombo para ações mais estratégicas. Às vezes é melhor ser desprezado, criticado e mesmo odiado do que compreendido. Algumas atitudes podem até ferir a pessoa, mas nem arranham sua localização garantida no núcleo do poder. O interino é maduro o suficiente para conviver com o desamor dos inimigos, mas é ambicioso o bastante para não perder a chance de estender seu poder além da conjuntura de crise institucional. Ele faz o mal por perto, mas leva o prejuízo bem longe.
A estratégia inicial de apresentar um inacreditável pacote reacionário, agredindo direitos sociais, civis e trabalhistas, parecia limitar o golpe ao tempo da reação popular. A senha parecia dada: o “não passará” haveria de chegar a cavalo. A cidadania se levantaria contra prejuízos de toda ordem, com greves, manifestações, ocupações e passeatas. A capacidade de reação seria do tamanho da afronta aos direitos ameaçados. A derrota no campo social prepararia a inviabilidade no contexto institucional. Incapaz de governar sem o povo, os golpistas seriam varridos da área.
A primeira parte do jogo foi jogada, os projetos antipopulares apresentados, o saco de maldades aberto em público. No entanto, tudo indica que não era para ser levado a sério. O que importava – e importa – ao atual governo golpista não está no horizonte da perseguição às conquistas sociais, mas na reorientação da economia e do Estado. O projeto de Temer não é aumentar a idade para aposentadoria, é destruir a seguridade social. Não se trata de inviabilizar o SUS e a educação pública com a falta planejada de recursos, mas de abrir os mercados dos bens públicos à iniciativa privada. E por aí vai. O que é para valer é o reordenamento, a todo custo, do fluxo de capitais em direção ao sistema financeiro.
Há uma onda neoliberal regressiva, muito mais potente que as vividas décadas atrás, que parece estrategicamente ligada ao projeto de refundação do Estado mínimo. A radicalidade da nova proposta está na desmontagem de toda a estrutura de solidariedade social, não deixando nada de fora. É esse o projeto Temer-Meireles ou Meireles-Temer: inviabilização da oferta pública de serviços, de investimento social e de projetos de distribuição de renda. Como balizas de sustentação, além da retomada das privatizações (chegando aos bancos públicos e ao pré-sal), ganha destaque a reorientação da política externa em direção ao sistema financeiro internacional e seus agentes estatais, operacionais e ideológicos.
A outra coluna que serve de alicerce é menos visível. Trata-se da retomada do ideário conservador em política e comportamento, que conta com o moralismo da classe média ressentida e com as rezas de hostes de crentes de várias confissões. Quando busca explicar o golpe, a esquerda tem se esmerado em apontar as raízes parlamentares, jurídicas e midiáticas do processo. É um bom diagnóstico, mas não esgota toda a doença. Está faltando a essa nada santíssima trindade a inspiração regressiva do moralismo, do racismo, da homofobia e do protofascismo. Weber não teria dificuldade em reescrever seu clássico, desta vez como farsa: “O fascismo neopentecostal e espírito do neoliberalismo”.
Para quem acha que se trata de muita conspiração para pouca substância, é só acompanhar o noticiário da mídia hegemônica pós-golpe. Ela não se importa mais em defender bandeiras indefensáveis da desmontagem do conjunto de direitos, herdeiro da Constituição de 88 (ou mesmo anteriores, como a CLT), mas em incensar “acertos” na economia, que enxergam em todo lugar. Não é um acaso que a mesma imprensa que se aperfeiçoou em criticar de forma tão determinada as políticas sociais se apresse agora em manter postura otimista frente a sinais que ainda não se observam na via da austeridade. Há um triunfalismo temperado por boa-vontade cândida. Até falar em crise internacional agora está valendo.
Temer não é Temer. A pessoa medíocre que acompanhamos todos os dias, que parece fácil de combater em seus equívocos exemplares, não é o inimigo real. Michel Temer é muito menor. Muitas vezes, uma pessoa menor é capaz de um mal maior.
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