Temer não tem dois lados, um bom e um ruim
Haja cara de pau. A imprensa brasileira ficou 18 meses tentando impedir a presidente eleita Dilma Rousseff de trabalhar. Mentiu, vazou, deturpou, articulou, interpretou, calou. Tudo de acordo com seu propósito de servir de instrumento de sustentação ideológica ao golpe que veio enojar o ano de 2016. A data se inscreve agora na memória de nossa vergonha histórica. Nem bem ajudou a vencer a primeira etapa, criando uma interinidade espúria e rechaçada pelas pessoas sérias em todo o mundo, a mídia familiar finge agora se pautar pela independência. E joga para a plateia com um falso ataque à ambiguidade do usurpador e canastrão Michel Temer.
A ideia de dividir o governo golpista em dois é finória. No fundo, os meios de comunicação querem vender uma objetividade que não têm, atacando o que julgam ser herança do passado, enquanto hasteiam bandeiras ideológicas como se fossem expressão da racionalidade. Mais que uma crítica, é uma forma indisfarçada de apoio. Por um lado, defendem a condução da economia e da política externa – áreas hoje integralmente nas mãos do PSDB –, favorável ao rentismo, à austeridade que alimenta a desigualdade social e à destruição de direitos consagrados na lei do país. Por outro, se apressam em rifar personagens menores, facilmente substituíveis, e apenas acessórios no projeto de vendilhões em matéria de poder, economia e política.
Temer não tem dois lados, um bom e um ruim. Poucas vezes a política brasileira foi capaz de esculpir um personagem tão plano, explícito e integralmente deletério. Não construiu nada em sua trajetória pública que seja digno de registro. Deslizou sempre pelos bastidores e sua maior obra política foi a traição. Começou traindo a si mesmo, ao aliar-se a um projeto com o qual não se identificava, apenas para se aproximar das sobras de poder. Seguiu como judas exemplar ao conspirar contra a titular de um governo do qual era vice, quando as migalhas não mitigavam mais sua fome. Por fim, completou a trairagem rifando os companheiros da vida toda em um jogo que impôs suicídio ritual de correligionários em nome de uma honra inexistente.
O haraquiri sem nobreza de Eduardo Cunha, nesse sentido foi patético, embora nem um pouco melancólico. O riso contido de Temer, por sua vez, consagra a frieza de um traidor contumaz. Ao virar as costas ao prócer do PMDB que lhe abriu o caminho, o traidor de primeira hora buscava afastar-se das mazelas de seu partido, preservando para si o olimpo de uma postura de estadista em sua pompa artificial. A cada dia, o projeto que alçou o interino ao poder provisório vai deixando nítida sua tática abjeta. Em primeiro lugar, cevar o mercado financeiro, na sequência sequestrar direitos sociais e, por fim tornar a democracia um mero procedimento de manutenção.
As frentes populares e os setores progressistas têm duas campanhas urgentes a serem mantidas simultaneamente: fora Michel e fora Temer.
A primeira e mais urgente é o ataque frontal ao golpe, a denúncia da ilegitimidade, chegando à desobediência civil se for necessário. Trata-se de uma estratégia política de confronto direto, sem descanso, em todos os espaços sociais. Uma mobilização que aglutine as forças populares, que confronte a conspiração, que combata o inimigo para destruí-lo. Em alguns momentos a delicadeza não serve mais. Não é possível conviver pacificamente com o avesso da lei e da ética democrática.
A segunda estratégia, mais paciente e igualmente necessária, deve fazer a disputa política nos campos da crispação social. Apontar o conservadorismo das propostas do governo interino, denunciar seu viés de classe, seu racismo, sua lgtbfobia, sua misoginia e retrocessos em vários campos. Desnudar o entreguismo, a criminalização dos movimentos sociais, a regressividade neoliberal, o corte de investimentos em saúde e educação, a procrastinação da aposentadoria, a destruição das leis trabalhistas, a recuperação do empenho privatista (desta vez chegando aos bancos e à Petrobras). O descaso com a ciência, a informação e a cultura.
É preciso cuidado com falsas dicotomias. Por isso é hora de dobrar a resistência, aprimorar as alianças e agir de forma mais holística. Fora Michel Temer. Nada menos que isso.
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