Governo golpista tenta despolitizar a política e privatizar o público
De uns tempos para cá, virou quase um mantra compassivo lamentar a divisão da sociedade, o conflito entre amigos e familiares, o divórcio de visões de mundo, as separações. Acusam-se as redes sociais e apela-se para uma atmosfera de concórdia e tolerância em nome de valores mais substantivos, como a paz social ou o pacto capaz de superar as divergências. Curiosamente, o mesmo ambiente moral que se incomoda tanto com o conflito oferece como solução a ausência de política, o esvaziamento do debate, o silêncio sobre a luta de classes.
Se há algo de bom no atual momento político se deve exatamente à exacerbação do conflito. Sem ele não há democracia, e sim falso consenso assentado em bases de violência simbólica, domínio dos meios de comunicação e políticas que expulsam a participação popular do horizonte. Não há nada mais importante que explicitar os conflitos, apontar as raízes dos diferentes projetos de sociedade, politizar as discussões. O momento atual, de golpe de Estado em andamento, não é de conciliação, mas de aspereza.
A luta pela cidadania é um processo de embate para conquista da política e da fala, tendo como objetivo reescrever os direitos num patamar mais elevado. Assim caminha a humanidade. Na chuva que atravessamos, não está na hora de apaziguamento e negociação. Não é um acaso que todas as propostas do governo usurpador se encaminhem para negação da política e para o esvaziamento da dimensão pública das políticas sociais. Há uma despublicização do público e uma despolitização da política. E isso se observa até mesmo nos setores mais carnalmente marcados pela presença da dimensão universal, como a saúde e a educação.
Na área da saúde, questiona-se o SUS e entra em discussão um projeto de planos de saúde para pobre, entre outras estratégias de desmonte. O que há por trás disso é claro. Um projeto regressivo de retirada da garantia de acesso universal, das diretrizes coletivas de interesse público das práticas do setor e de seu poder regulador – saúde como um direito –, para a entronização da saúde como mercadoria. Sai a saúde pública, entra o negócio. O mais curioso é que a tudo se constrói a partir do argumento da carência de recursos e da necessidade do ajuste fiscal.
Paradoxalmente, a pobre saúde, sempre em estado “caos”, se revela um setor capaz de enriquecer o segmento da alta tecnologia e as corporações que apostam no modelo liberal de atenção. Para garantir esse mercado suntuoso, é preciso destruir o SUS e com ele as conquistas de décadas da mobilização popular, na forma de pressão e instâncias de controle social; e contestar a contribuição científica e de gestão gerada pelo movimento sanitarista brasileiro.
É preciso saúde para brigar. Saúde política, coletiva e fundamentada no melhor conhecimento e práticas sociais. O contrário disso é esmorecimento, entrega, lassidão. O golpe, em todos os aspectos, é uma doença no corpo e na alma de um país democrático.
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