Imprensa acoberta vexames de Temer
O presidente não eleito Michel Temer é um ser que mente. Como se não bastasse, cerca-se de mentirosos. E não exibe modéstia nem contenção nessa disposição de caráter: mente pela imprensa, mente em Nova York, mente a si mesmo.
Mentir para si mesmo pode ser uma das formas de suportar a existência. Se fôssemos vigiados todo o tempo para impedir contradições ou mudanças de rumos, a vida seria um inferno. O autoengano ameniza a culpa e serve de escape para o excesso de cobranças dos outros. É uma forma de facilitar as coisas, de dar um arrego nos compromissos. Quem nunca adiantou o despertador para ganhar cinco minutos de preguiça ao acordar?
Há, no entanto, autoenganos perversos, como aqueles que nos convencem que nossa vida é mais difícil que a dos outros e nossas conquistas mais merecidas. Nada que a humildade e o senso de realidade não deem conta. Não é o caso dos golpistas. O autoengano nessa situação precisa ser validado o tempo todo com a falácia dos procedimentos, do álibi moral para transgredir em nome da obediência a normas menores. Passar por cima de lei, jogar a vontade popular no lixo, corromper os juízes-senadores com promessas, nada disso se compara ao prazer protocolar de se julgar defeso pelo cumprimento de expedientes formais.
Já a mentira objetiva, direcionada a enganar o outro de forma determinada, deixa de lado as defesas inconscientes para se tornar uma ferramenta que corta os laços da convivência social. Quem mente não se preserva apenas de seus defeitos, mas afronta os outros com a quebra da confiança. A mentira é arma dos covardes, dos presunçosos, dos traidores. Pode-se mentir para uma pessoa ou para todo o mundo, inclusive em audiências frequentadas por chefes de Estado. O mentiroso profissional é um sujeito da desmedida, limitado apenas por sua ambição de criar a realidade que melhor se casa com seus interesses. É, orgulhosamente, um canalha.
O cidadão Michel Temer parece ser um caso clássico da ausência de fronteiras entre o autoengano e a mentira. Exerce os dois universos da restrição à verdade com uma pertinácia absoluta. Suas palavras sempre fogem à realidade dos fatos. Há pelo menos duas explicações para essa forma de alienação: ou ele é inepto ou é mau. Nos dois casos, a primeira vítima é sempre a verdade. Temer já demonstrou que não sabe o que fala, que é pedestre em política, economia e sociedade. Mas o pior ocorre quando acredita no destempero de sua ignorância.
No campo do autoengano, deve se julgar magnânimo, embora seja um golpista consumado; acredita ser fiel a seus pares, mesmo tendo sido executor do mais execrável ato de traição da história republicana recente; talvez creia que a recatada Marcela o ame por seus merecimentos mais pessoais.
Mas é no que diz respeito à mentira que seus atos exacerbam. Afirmou que o país vive momento de estabilidade interna, quando a sociedade se exaspera em meio a ilegitimidade que ele representa; oferece um cenário de confiança ao investidor ao mesmo tempo que atravessa uma crise econômica em grande parte criada pela instabilidade política que capitaneou. Fala em paz e manda a polícia baixar o cacete.
No entanto, ele não mente sozinho. A capacidade da imprensa em relevar os erros do presidente golpista chegou ao paroxismo na cobertura do vexame internacional durante a recente reunião da Organização das Nações Unidas. Os jornais e emissoras de televisão que ajudaram a urdir o impeachment mantiveram a construção de uma realidade que não partia dos fatos, mas de convicções prévias. Poucas vezes houve tanto descompromisso entre o que se ouvia (discursos com mentiras acerca de refugiados haitianos e de apoio ao Mercosul, por exemplo) e via (a retirada do plenário de seis chefes de Estado) com o que se lia nos jornais. O fiasco foi transformado em triunfo.
A imprensa se esmera para completar sua atuação para fazer jus à paga que acredita merecer pela consecução do golpe que ajudou a planejar. Deixou de passar o pires das verbas públicas miúdas e espera agora o filé das grandes “campanhas de comunicação”, que devem chegar em breve para salvar a lavoura. Deixar de fazer jornalismo parece ser um destino inescapável e, com isso, um tiro no pé. É a sina dos mentirosos: a primeira fuga à verdade cria a danação continuada do aprendiz de feiticeiro que perde o domínio de seus instrumentos. Em breve, o leitor vai ter um jornal em mãos e vai enxergar um panfleto.
Talvez a saída possível para esse impasse da mentira e do diálogo como outras vozes, impedido pela farsa da incomunicação, seja a recuperação de um princípio clássico da filosofia marxista: a verdade é sempre revolucionária. Há a hora de falar a verdade. E o momento de fazer a revolução. Poucas épocas são tão críticas como a nossa, em que as duas tarefas parecem ser uma só.
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