Minas Gerais

Coluna

Muito poder para pouca democracia

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No Judiciário brasileiro, a lei deixa de emanar do povo para operar contra ele

O equilíbrio dos três poderes da República sempre foi defendido como uma garantia da harmonia democrática. No mundo ideal, o Executivo coloca em ação as políticas definidas democraticamente pelas urnas; o Legislativo elabora leis por meio de um processo representativo, também democrático, além de atuar na fiscalização do governo em várias instâncias; e o Judiciário funcionaria como guardião do Estado de Direito, por meio da defesa da lei emanada pelo povo. Como se vê, a democracia é fundamento, método e objetivo dos três poderes.
No atual estágio da crise de legitimidade por que passa o país, essa estrutura se desmanchou na atmosfera do arbítrio. O governo não eleito é herdeiro de um golpe, autoritário e regressivo, que desata os laços com a base popular, exercendo o poder contra o projeto aprovado nas urnas. O Legislativo rompeu com a representatividade popular, se tornou mero aparato burocrático de validação parlamentar. Foi o que demonstrou ao aprovar a PEC 241 em dois turnos da Câmara, numa flagrante desobediência às manifestações majoritárias de vários segmentos da sociedade – em troca de dois jantares, ameaças e promessas paroquiais. O Judiciário é um caso à parte.
Considerada a instância mais preservada e independente, o Judiciário brasileiro, com raríssimas exceções, sempre foi um poder legitimador, para não dizer um legitimador do poder. Independentemente da orientação, foi fiador de regimes autoritários em diferentes momentos de nossa história. Enquanto o pau comia, havia uma quase secreta certeza que o Judiciário ao final se aliaria aos vencedores. Ainda que com oportuno zelo em manter-se na sombra. Um comportamento que entremeava discrição com leniência, formalismo com conveniência, arrogância com covardia. Não veio habitualmente do Judiciário brasileiro a voz forte da contestação à tirania. Mesmo sábios, eram fracos; menos sábios, permanecem tíbios.
Apesar dessa história empalidecida e falha de defesa das liberdades, o Judiciário parece querer descer ainda mais em termos morais. Perdeu, nos últimos tempos, pelo menos a elegância e o saber jurídico que o destacava. Mordido pela sede de nomeada, se tornou midiático, vaidoso e partidário. Somam-se os episódios em que deixou sua posição de juiz imparcial para tomar o protagonismo de ator na cena política. Fortalecido em seu ego institucional – categoria que a psicanálise poderia ajudar a entender – tomou gosto pela exibição.
Os julgadores e operadores da justiça tornaram a transparência devida em exibição televisiva. Ganharam canais de TV, programas, concursos de popularidade, prêmios oferecidos por jornais. Juízes e ministros inspiram máscaras de carnaval, propósitos heroicos, posturas salvacionistas. Não é um acaso que muitos se aliem à ética de fundo escatológico. Soltam sentenças acacianas a toda hora em defesa da liberdade, criticam o vernáculo por mera idiossincrasia, dão pitaco em jornalismo, se arvoram a censores ameaçando publicações que de resto têm servido apenas para alimentar sua gula por celebridade. Validam medidas de exceção. Em meio à grave crise política, se recusam a dialogar com outros poderes.
O mais grave é que essa onda moralista e punitivista se insere num contexto de crítica aos direitos humanos e de cerceamento de liberdades civis, seguido de perto pela mídia monopolista. As ações escorrem ainda do campo institucional e jurídico para dimensões estruturais da política e até da economia. Os prejuízos de ações como a Lava Jato já são quantificados com preocupação até mesmo por seus incentivadores. Como um aprendiz de feiticeiro que não domina seus instrumentos, a vaga se espalha levando com ela intolerância, violência e crise.
Faz parte da trajetória do Judiciário bancar o poder conservador. No Brasil e no mundo. O golpe contra Dilma Rousseff teve todo o rito validado pelo STF, como havia ocorrido, em outros contextos, em Honduras e no Paraguai. Não se pensava que a história se repetiria como farsa numa democracia de massas um pouco mais avançada. A surpresa é um atestado de que a confiança em política chega sempre depois da ingenuidade. Há uma submissão da política à Justiça, como se tratasse não de um desvio, mas de uma precedência universalizante. A lei deixa de emanar do povo para operar contra ele, mesmo que não haja materialidade (bastam convicções) ou evidências (é suficiente o domínio do fato). O Judiciário instaura o procedimento que ele mesmo julga. Como na figura do uroboro, a serpente engole a própria cauda.
O desprestígio da política, expresso nas últimas eleições, é apenas um dos descaminhos perigosos dessa proeminência. Num contexto de Executivo sem legitimação popular e de Legislativo sem representatividade real, o Judiciário pode passar a incorporar o papel de poder tantalizante, que esmaga a diferença em nome da norma autoritária que se consagra como vingança e perseguição. A contestação das políticas sociais em nome de significantes falidos em todo o mundo – como cortes, tetos e ajustes – não é uma consequência danosa, mas o resultado de um projeto. Parte da população identificada com o pensamento conservador parece vir se acostumando de forma quase imperceptível com o autoritarismo. Com certo prazer, sente que com a vigência do imperialismo do jurídico não precisa mais chamar os milicos para o serviço sujo.
Esse estado de coisas é bem conhecido. Atende pelo nome de fascismo. Basta olhar à volta para reconhecer o ovo da serpente.

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