Nas primeiras eleições após o golpe, partidos tradicionais, como PMDB e PSDB, foram os mais votados em todo o país. Ao mesmo tempo, o número de eleitores que não escolheram nenhum candidato cresceu consideravelmente. Em muitas cidades, um discurso de negação da política e afirmação do “novo”, da “mudança”, foi o mote central do marketing eleitoral. Isto, evidentemente, não significa que a política brasileira tenha passado por uma profunda renovação. Para discutir esses e outros temas, o Brasil de Fato MG conversou com o professor Claudemir Francisco Alves, membro do Núcleo de Estudos Sociopolíticos (Nesp) da PUC Minas.
Brasil de Fato – Em várias cidades, a soma dos votos nulos, brancos e abstenções superou a votação do primeiro colocado. Além disso, a proporção de nulos e brancos aumentou cerca de 80% no Brasil, em comparação com o pleito de 2014. Como você interpreta esse fenômeno?
Claudemir Francisco Alves – Primeiramente, é preciso constatar que esta foi uma eleição esvaziada de conteúdo político. Como costuma acontecer no pleito municipal, as propostas são muito genéricas e não mobilizam o eleitor por não discutirem os problemas reais. Então, as eleições municipais costumam ser, de todas as esferas, as mais despolitizadas. Os debates não tocam naquilo que realmente afeta a vida da população.
Em segundo lugar, muitos eleitores mostram uma descrença naquilo que os candidatos propõem. Embora o eleitor comum não saiba explicar as disputas ideológicas, ele tem uma vaga impressão de que tudo aquilo que se ouve nas campanhas é genérico demais e de que, afinal, as promessas não serão cumpridas.
Em terceiro lugar, neste ano, os candidatos não contribuíram muito para superar esse problema. Em Belo Horizonte, por exemplo, o candidato João Leite (PSDB) começou o segundo turno fazendo um apelo emocional ao eleitor que se absteve de votar no primeiro turno, mas essa estratégia não deu certo. Ele viu que já havia batido no teto das pesquisas e resolveu abandonar essa abordagem.
Enfim, somando as propostas vazias, o desinteresse do eleitorado e candidatos sem capacidade para atrair, o resultado, em muitos casos, é a constatação de que não vale a pena votar. Além disso, um candidato como Alexandre Kalil, que diz que não é político, contribui ainda mais para a “desacreditação” da política e o desinteresse da população frente às eleições.
O que fica como alternativa para quem optou por não ir às urnas ou, quando foi, escolheu votar em “ninguém”?
Aqui está o ponto crucial do debate. Hoje, não temos alternativas reais para esse eleitor. A alta taxa de abstenção é resultado da campanha da grande mídia de destruição da política, de tentar fazer com que a política seja vista como uma coisa suja. Qual alternativa teríamos a isso? A participação efetiva da população. Entretanto, vimos, de Norte a Sul, o crescimento de partidos conservadores – justamente os que são contra o incremento da participação popular. Se a participação seria a alternativa e quem nega isso é quem mais cresceu eleitoralmente, então, estamos em um beco sem saída no curto prazo. A situação de quem não votou não é diferente de quem votou no menos pior. Esse cidadão fez uma escolha não por se identificar com determinado projeto, mas por rechaçar o projeto adversário. A falta de alternativa toca a todos os cidadãos, não apenas a quem não foi votar.
Candidatos como Alexandre Kalil, em BH, e Alex de Freitas, em Contagem, se elegeram com um discurso de negação da política. Entretanto, eles estão há anos vinculados a partidos tradicionais, como o PSB e o PSDB. Até que ponto esse discurso é apenas uma estratégia de marketing eleitoral?
Eu só vejo marketing eleitoral nisso. Em primeiro lugar, há uma concepção reduzida do que é política. Algo semelhante ocorreu na eleição de João Dória (PSDB) em São Paulo. Foi a primeira vez, desde a redemocratização, em que aquela cidade teve uma eleição municipal definida no primeiro turno e o discurso foi esse mesmo, da antipolítica.
Trata-se de um discurso falso. Imaginemos que, por absurdo, um candidato nunca tivesse atuado na política profissional, entendida no sentido mais restrito, como atividade que os políticos fazem. Ora, no exato momento em que ele se candidata, torna-se, automaticamente, mais um político. Quando pensamos num sentido amplo, a política ocorre sempre que há uma relação desigual entre pessoas e essas pessoas precisam negociar algo. Assim, somos todos políticos.
Se nos ativermos ao fato da negação da política, é preciso dizer que ela é descaradamente mentirosa, inclusive pelo histórico dos dois candidatos. Todos eles têm uma longa trajetória política. Não é recente a busca de apoio, pelo Kalil, em Lacerda ou Aécio. Essa é uma conversa para ludibriar o eleitor incauto. Mas qualquer um que pense sobre o assunto vai constatar a falsidade desse discurso.
Outra ideia falaciosa é separar a política e a técnica, como se uma pessoa bem-sucedida na gestão de uma empresa pudesse, necessariamente por isso, ser um bom prefeito. Quem começou esse discurso em Belo Horizonte foi o prefeito Márcio Lacerda, o que mostra que o discurso da não política não é feito apenas pelos partidos pequenos.
O caso do PSDB em Contagem é um pouco diferente, pois Alex de Freitas, embora tenha uma longa trajetória político-partidária, não é um quadro histórico do PSDB e já passou por pelo menos mais um partido antes. O quadro do PSDB na cidade era o Ademir Lucas, que disputou a eleição em um partido menor. Curiosamente, numa cena das mais estranhas nestas eleições, ele gravou um vídeo declarando apoio ao candidato do PC do B.
Mas outra coisa embutida na sua pergunta é o impacto que o crescimento dos partidos menores terá nesse contexto. Veja o PHS do Kalil: um partido sem expressão ideológica, mas que agora controla a prefeitura de uma das principais cidades do pais. Vale a pena pensar no que vai ser a gestão do Kalil com esse discurso de que não precisa de apoio. Ele vai, sim, precisar do apoio de vereadores e fará acordos para tal, pois o PHS tem menos de 10% dos vereadores na Câmara.
O fato de o PHS não ser um partido grande, indica que Kalil precisará de outras forças políticas para ocupar os principais cargos da Prefeitura?
É uma ilusão achar que o PHS é um partido “sem história”. Dizer que ele não tem expressão ideológica, como afirmei antes, não significa que ele não tenha história ou, pelo menos, que seus filiados já não tenham uma trajetória política. Na verdade, mesmo entre os vereadores do PHS há quem já tenha sido quadro tradicional em outro partido, mas, por desentendimento ou por tática eleitoral, acabaram se instalando no PHS. E, apesar de toda a guerra sangrenta entre os candidatos no segundo turno em Belo Horizonte, não estamos falando de quadros que são estranhos um ao outro.
A menos que os poucos vereadores petistas e as parlamentares do PSOL tendessem a apoiar o prefeito eleito, ele vai ter que fazer alianças mais à direita, com pequenos partidos, mais fisiológicos. Esse é um público potencial com o qual ele vai ter que constituir alianças. Os cargos, então, começam a entrar em questão. Não dá para esperar que, por um simples ato de vontade, Kalil tenha uma relação com a Câmara à base apenas de projetos políticos. É evidente que já entraram negociações miúdas de ocupação do espaço político da Prefeitura.
Mapas dos resultados eleitorais mostram que o maior número de prefeituras perdidas pelo PT foram para o PSDB e o PMDB. Além disso, esses dois partidos aparecem como os maiores, tanto em número de prefeituras quanto no governo de municípios com as maiores populações. Em que medida, portanto, o atual contexto de descrédito da política e dos partidos beneficia os partidos tradicionais?
Negar a política beneficia sempre os mais conservadores. As manifestações de 2013, por mais que tenham começado por movimentos bem intencionados, foram aos poucos sendo apropriadas. Após o grito “vocês não me representam”, vimos que, em 2014, elegemos um dos congressos mais conservadores de nossa história. Esse é um ponto pacífico nos estudos: quanto mais se nega a política, mais o conservadorismo ganha. É por isso que temos visto o crescimento dos candidatos vinculados aos partidos que conduziram o golpe de Estado recente.
Por outro lado, não dá para exagerar o significado desse crescimento. Por exemplo, o PSDB ganhou pouco menos de um terço das grandes cidades do país, mas o presidente da sigla, Aécio Neves, perdeu em BH, com a derrota de João Leite. Por mais que seu partido possa vir a participar da gestão Kalil, ele sofreu uma significativa derrota.
Além disso, eu não sei se a importância de uma prefeitura é mensurável apenas pelo tamanho da população do município. Embora seja uma análise possível, não podemos absolutizar tal informação. O voto é sempre muito volátil. O fato de ter grande votação nesta eleição obedece a fatores da conjuntura. Um terço das grandes cidades será governado pelo PSDB, mas isso não significa que o eleitorado tenha identificação ideológica com o PSDB. Não uma há transposição direta.
E m BH, o PSDB venceu em apenas três regionais. Quando pegamos o alto da Afonso Pena, Serra, Cruzeiro e outros bairros da região, João Leite tem maiores votações. São regiões de classe média ou média alta. Quando olhamos o restante da cidade, repete-se o mesmo resultado global, com Kalil na primeira colocação. Esse é um dado curioso, pois sugere uma relação entre o resultado eleitoral e o poder aquisitivo das pessoas.
A partir disso, é válido inferir que o PSDB não consegue avançar na votação para além da classe média?
Eu acredito que o dualismo reduz o fenômeno. Concordo que há uma concentração nessas três regiões mencionadas, mas não podemos ignorar que a diferença entre os dois candidatos não foi tão grande assim: 53% a 47% para o Kalil. Quando olhamos outras regiões de BH, essa divisão se repete em certa medida. Lógico que há situações com 63% para João Leite, mas, em outras regionais, as diferenças não passam dos 10%. Eu reforço o raciocínio anterior: não é propriedade de um partido os votos alcançados em um determinado momento. Votos são sempre conjunturais. Dizem respeito a uma situação específica. Nestas eleições de 2016, em Belo Horizonte, a votação parece refletir a fraqueza de propostas, a conjuntura nacional, o descrédito dos partidos de esquerda.
Por outro lado, Kalil não é nem PT nem PSDB, como às vezes aparece na grande imprensa, embora – potencialmente – qualquer um desses dois partidos possa acabar participando de seu governo. Será um governo sem cara própria, para além do personalismo do prefeito. Como não terá consistência ideológica, pode acabar abrindo a porta para todo mundo que quiser participar. O próprio prefeito eleito já disse que todos que quiserem fazer a cidade funcionar serão bem-vindos.
Os jornais têm noticiado que 81% dos eleitos pertencem a partidos da “base aliada” do governo Temer (PMDB). Comemorando esse dado, o ministro Eliseu Padilha disse que essa é prova de que o “discurso de golpe não teve ressonância na sociedade”. O resultado das eleições municipais pode conferir legitimidade a um governo federal que não se constituiu com voto popular?
Não acredito nisso. A tal “base” a que os jornais se referem é algo muito instável. Boa parte dela já foi “base” do governo Dilma. Os acontecimentos recentes mostram que essa “base” migra facilmente de um lado para outro.
O que há de verdadeiro é constatar que a população não se preocupa tanto com a caracterização de que houve um golpe no Brasil. Não vimos nenhuma grande mobilização da sociedade. É claro que importantes movimentos de resistência estão ocorrendo, mas não tivemos um movimento de massas e, a menos que algo novo venha a acontecer, não teremos. Mas isso me parece uma consequência direta do que discutimos antes: há uma indiferença da sociedade com a política. O cidadão que não acompanha com frequência os acontecimentos políticos tem uma interpretação esquizofrênica, como se as coisas não estivessem interligadas. Ele não percebe como uma eleição municipal afeta seu salário e suas condições de vida, por exemplo, ou não vê como há relação entre o candidato que ele elege para prefeito e o que está acontecendo no âmbito nacional.
Dizer que, ao votar em partidos que foram parte da ação golpista, o eleitor legitima o golpe é forçar uma interpretação. No melhor dos casos, o eleitor diz: “houve golpe, mas, agora, vamos tocar a vida”. Nestas eleições, o governo Temer (PMDB) não foi diretamente avaliado. Para que tivéssemos uma avaliação popular do governo, ele deveria passar pelas urnas. Para o eleitor comum, eleger prefeito não tem relação explícita com o que acontece em Brasília, no plano federal.
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