Movimentos populares têm resistido contra a retirada de direitos
Há uma lógica na repressão. As reiteradas ações violentas contra os movimentos populares no Brasil apontam um rumo claro em direção ao retrocesso das conquistas de toda a natureza. Direitos trabalhistas, direitos sociais, direitos humanos e todo o conjunto de valores que permitem chamar um país de civilizado, são ameaçados a cada dia num ralo de reação que suga princípios seculares e consolidados constitucionalmente.
Há poucos dias, a prisão do líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, durante um conflito em torno da reintegração de posse em uma ocupação na região Leste de São Paulo, escancarou como opera a ação do aparato repressivo na era pós-Temer. O fundamental é acirrar o conflito, desinformar a sociedade, gerar um contexto de pós-verdade (ou de manipulação dos fatos), usando abertamente as estratégias disponíveis. Vale esconder a realidade, turvar a cronologia, lançar mão de decisões judiciais provisórias como se fossem sentenças inapeláveis.
Os 3 mil moradores da ocupação haviam sido notificados há uma semana e entrado com pedido de suspensão da reintegração de posse no Ministério Público. Mesmo assim, no raiar do dia 17 de janeiro, acordaram com a movimentação da tropa de choque da Polícia Militar em suas portas. Para tentar adiar o cumprimento da ordem judicial, até a liberação do parecer do MP, os moradores se mobilizaram em defesa de suas casas. Receberam de volta bombas e outros artefatos truculentos.
Boulos, que acompanhava a reintegração de posse e tentava mediar o embate com a polícia, foi detido ilegalmente e levado ao 49º Distrito Policial de São Mateus. Para o delegado que o prendeu, “houve resistência ideológica”. O delegado, em seu momento de magistrado, chegou a recuperar tese celebrada por Joaquim Barbosa, apelando para a teoria do domínio do fato. Boulos, por ser notoriamente de oposição, é automaticamente culpado por atos cometidos contra o traidor não eleito.
A ocupação, que foi massacrada por tratores e outras máquinas – que deixaram de lado sua inspiração construtiva para sepultar a dignidade mínima de 700 famílias –, estava em área composta por dois terrenos particulares e uma área da prefeitura de São Paulo. Detalhe: todos eles abandonados há mais de 30 anos. A primeira reintegração de posse da gestão do prefeito João Dória (PSDB) confirmou seu discurso anti-social de campanha, o que não é exclusividade de São Paulo
Guilherme Boulos foi liberado no fim da tarde, quando a poeira baixava sobre casas destruídas. Frente ao entulho imprestável, milhares de pessoas, entre elas centenas de crianças, sofriam sem saber para onde ir. A solução apresentada, de cadastro em programas de moradia popular, não dava conta da noite que avançava, das outras que se seguiriam e da ausência de lugar onde os trabalhadores pudessem abrigar suas famílias. Eram novamente trabalhadores sem teto.
Ao transformar a luta pela moradia em invasão, a lógica da repressão faz com que o fato de não ter teto se configure como um crime contra a propriedade, o que provoca a reação justificada de violência por parte das forças policiais. Outra consequência dessa mesma estratégia é o isolamento do aparato da Justiça da situação de fato, como se tudo se desse num terreno pacificado de leis que garantem a propriedade privada, mas que voltam o rosto para a alienação do contexto.
A cena hedionda da destruição de centenas de casas, por essa atitude de despersonalização, se afigura mais como uma operação de limpeza do que pela destruição que evoca. A dimensão humana que parece brotar do episódio convocaria a buscar solução não apenas judicial, mas de proteção social às famílias. O que traduziria em maior cuidado com as pessoas, em vez da obediência cega ao direito por uma área denegada por décadas, até se tornar interessante para os negócios.
É bom lembrar que não se trata de caso isolado. A criminalização dos movimentos populares vem se encorpando no país e, durante as últimas eleições municipais, entrou na pauta regressiva de várias candidaturas antipopulares. Tratamento violento em protestos, invasão da escola do MST, uso de leis antiterrorismo, declarações em defesa de chacinas, bombas atiradas contra estudantes e todo o arsenal de táticas repressivas vão compondo um caldo de cultura que se aproxima visivelmente do fascismo.
Os movimentos populares têm sido a força mais consistente de resistência às injustiças no Brasil. É seu lado de denúncia das ameaças de desumanização. Além disso, têm se empenhado para barrar a ofensiva conservadora contra direitos conquistados. É o lado da defesa da democracia. Por fim, cabe aos movimentos populares a inteligência na oferta de novos modelos de crescimento econômico com justiça social. Este é o terceiro lado do triângulo, das utopias possíveis e necessárias.
Denúncia do que nos tira substância humana; defesa dos valores conquistados na luta democrática; anúncio de cenários em que o homem viva em sua integralidade. É esse rico patrimônio que a criminalização dos movimentos populares quer extirpar da sociedade brasileira. A arrogância, mesmo que alimentada pelo aparato da Justiça de classe e da defesa ideológica por parte da mídia, não se dará nunca no vazio da passividade.
O momento é de luta e de escolha. Não é metáfora apontar a situação atual como uma escolha de vida ou morte.
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