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"Problema do orçamento não vem da previdência, vem dos juros pagos", diz pesquisadora

A economista da Unicamp, Marilane Oliveira Teixeira, explica os mitos por trás do projeto de reforma da previdência

Belo Horizonte |
Marilane: "Mulheres trabalham em casa em média 21 horas por semana e os homens 10h"
Marilane: "Mulheres trabalham em casa em média 21 horas por semana e os homens 10h" - Rogério Hilário / CUT Minas

O primeiro mito que a economista, assessora sindical e pesquisadora na área de relações de trabalho e gênero da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Marilane Oliveira Teixeira, desfaz é que a Previdência no Brasil é deficitária. Ela aponta que o problema está na arrecadação, e não na ponta, ou seja, nos trabalhadores. Os juros da dívida pública, a sonegação e isenções fiscais consomem muito mais o orçamento do que a política fundamentada na Constituição de 88. Além disso, a reforma tal como está sendo proposta pelo governo de Michel Temer prejudicará sobretudo as mulheres, que já têm uma jornada de trabalho maior que os homens e podem vir a ganhar ainda menos.

Teixeira aponta que se fossemos apenas "olhar o orçamento da Previdência, por exemplo, isolá-lo do sistema de seguridade social, dá para ver que, no caso da previdência urbana, todos os anos é superavitário. Em 2015, quando a economia já apresentava um quadro de crise e de queda do PIB o superávit foi de R$ 5 bilhões".

Confira a entrevista:

Brasil de Fato - Existe um discurso que tenta sustentar que a Previdência é deficitária e por isso seria preciso uma reforma. Por que, na sua avaliação, ela não é deficitária?

Marilane Teixeira - A Previdência faz parte de um sistema de Seguridade Social. Ela não pode ser vista como se tivesse um orçamento próprio, porque isso é equivocado. A Constituição de 1988 aprovou que é preciso um orçamento único da Seguridade, onde está incluída a Previdência. A receita desse sistema vem, em parte, da própria contribuição previdenciária, seja dos empregadores, seja dos trabalhadores.

Outra parte vem das contribuições sociais, do lucro líquidos das empresas e o Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), que é uma contribuição financeira. Isso, junto com outras receitas, compõe o orçamento. Quando a gente pega esse recursos e compara com os gastos de seguridade social, é possível verificar que em todos os anos é superavitário, ou seja, o que se arrecada para sustentar o sistema é superior ao que se paga com o pagamento da Previdência, com a assistência e a saúde. Mas se a gente fosse olhar só o orçamento da Previdência, por exemplo, isolá-lo do sistema de seguridade social, dá para ver que, no caso da previdência urbana, todos os anos é superavitário. Em 2015, quando a economia já apresentava um quadro de crise e de queda do PIB (Produto Interno Bruto) o superávit foi de R$ 5 bilhões.

E no caso da Previdência rural?

O déficit aparece quando se soma a previdência urbana com a rural. A Previdência rural arrecada em torno de R$ 5 bilhões por ano e gasta em torno de R$ 90 bilhões. Mas isso é uma decisão que foi tomada, na Constituição de 88, para ser possível financiar a Previdência rural. A maior parte dos trabalhadores rurais – que são cerca de 9 milhões – recebe em torno de um salário mínimo. E as suas contribuições também giram em torno de um salário. É muito difícil medir a contribuição no meio rural, que se dá por meio da produção, por safras.

O sistema da previdência rural foi construído justamente para contemplar essas situações concretas, que se chama de “segurados especiais”. A Reforma vai representar uma perda dessa estrutura que foi montada para beneficiar o trabalhador e a trabalhadora rural ao exigir que ele contribua mensalmente, individualmente – não mais a família – para a Previdência. Isso vai ter impacto também sobre as mulheres, porque provavelmente a contribuição vai se dar em nome do marido, porque a sociedade é sexista e patriarcal. Ela vai ficar novamente desprotegida, mesmo tendo trabalhado a vida toda.

Esse reconhecimento da diferença no trabalho no campo se liga a uma concepção de Estado, que precisa considerar as particularidades reais. O que essa proposta de mudança sinaliza de concepção de Nação?

Essa opção está ligada a uma concepção de política pública, de inclusão social. Ao se contemplar 9 milhões de homens e mulheres no campo, que começaram a trabalhar na maior parte das vezes antes dos 10 anos de idade, está se reconhecendo que eles cumprem um papel fundamental para o país. Eles trabalham cerca de 40 anos em condições difíceis, adversas, sem jornada regular, de sol a sol. E hoje 85% dos alimentos que consumimos na cidade vem da agricultura familiar. Para uma família de trabalhadores rurais, se é tirada a perspectiva de um mínimo benefício, pode gerar inclusive um novo êxodo para as cidades, em procura de trabalho e aposentadoria. Então a aposentadoria rural é fundamental para manter a população no campo e produzindo alimentos.

Nesse debate de Reforma da Previdência são apresentados números na casa dos milhões, bilhões, mas o que está em jogo são benefícios que não passam muito do valor do mínimo... Onde está todo esse dinheiro, o que poderia ser feito para o país ter crescimento econômico com justiça social?

Para manter políticas públicas, é preciso uma política de governo, de Estado. São necessárias fontes de recursos, que são basicamente tributárias, ou seja, os impostos. O problema que vivemos no Brasil – e isso não é de agora, é uma herança de uma sociedade que sempre foi servil, em que as elites sempre tentaram obter vantagens e privilégios sobre o Estado – é que uma parcela da sociedade se nega a pagar impostos, sonega, paga menos que deveria pagar por lei. No caso da previdência isso é ainda mais aviltante.

Existem inúmeras experiências de pessoas que recebem mais do que está registrado, o que é uma sonegação grave. Existe muita informalidade, muita precariedade, situações em que não há proteção social ao trabalhador e não se arrecada para a Previdência. A gente precisa tomar consciência de que o problema está do lado da receita, da arrecadação.

Segundo, é preciso ter instrumentos, mecanismos mais efetivos, para atuar de forma mais dura na fiscalização sobre as empresas que sonegam, que se recusam a registrar trabalhadores. O Ministério do Trabalho poderia atuar de forma muito mais eficiente. Outro problema é o excesso de isenções, de incentivos que o governo dá as empresas. E isso é histórico, vem desde a constituição do Estado brasileiro. As empresas pressionam e chantageiam para que o Estado lhes conceda vantagens para que elas invistam no país. Com isso, são perdidos bilhões. Essa política de desoneração da folha de pagamento, implementada desde 2012, com mais de 50 setores econômicos, já significou mais de R$ 200 bilhões em perdas, com compromisso do setor de que a desoneração contribuiria para gerar emprego e isso não aconteceu. As empresas apenas aumentaram suas margens de lucro.

Somadas as desonerações, os incentivos fiscais, a sonegação, a informalidade, já dá mais um orçamento da Previdência. Ao invés de se tratar de forma mais eficiente o lado da arrecadação, essa proposta de Reforma da Previdência penaliza o lado do trabalhador, reduzindo a possibilidade mesmo de ele se aposentar. Imaginar que nesse contexto uma pessoa vai contribuir 49 anos é praticamente dizer que isso não vai acontecer.

Muitas pessoas chegam a pensar em não contribuir mais para o INSS...

Isso começa a aparecer com muita força, inclusive entre os jovens. Uma parte entrou no mercado de trabalho de forma precária, outra já está desempregada. E muitos deles questionam mesmo o valor do INSS, já que o Estado pode não devolver isso em aposentadoria. Talvez achem melhor até investir em planos privados de aposentadoria. Se o projeto for aprovado como está sendo proposto, o que vai chover de planos de previdência privada, oferecidos pelos bancos, pelas instituições financeiras, vai ser impressionante. Mas é preciso ficar atento: esses planos não oferecem segurança de sua qualidade, de sua legitimidade. Essas empresas podem falir, podem dar golpes e quem contribuiu vai perder tudo. Um dado indica que 76% de quem está no mercado de trabalho hoje não vai conseguir alcançar uma aposentadoria integral.

Essas medidas são muito imediatistas, não pensam no país a longo prazo. O que se espera com essa reforma daqui a alguns anos?

Não tem nenhum projeto de Nação. Essa reforma é mais uma tentativa de responder ao mercado. Tudo é para responder ao mercado: o congelamento dos gastos em 20 anos, a reforma da previdência. O sintoma disso é como as Bolsas de Valores se comportam frente a esses projetos. Estamos sendo orientados pela Bolsa de Valores. Se a Bolsa aumenta, é porque o mercado reagiu positivamente às medidas. Então não há absolutamente nada de um projeto nacional, de inclusão social, que se preocupe com a redução das desigualdades, que vá progressivamente incluindo homens e mulheres em condições mais favoráveis. Inclusive os argumentos que eles utilizam – como a questão demográfica – não se colocam agora. O bolo demográfico deve haver em 2025 e um desequilíbrio maior entre a população ativa e a aposentada só vai se dar em 2060. Há uma contradição no discurso do governo, porque ele alega que não são questões de curto prazo, mas ao mesmo tempo fala que é para cobrir o rombo do orçamento. E os problemas do orçamento não vêm da previdência, vêm dos juros pagos pela dívida pública. Esse sim é um problema central no país hoje e sobre isso um governo responsável deveria se debruçar: a redução das taxas de juros.

Como a Reforma da Previdência como está proposta vai afetar as mulheres?

Há vários aspectos. O primeiro deles é a idade, aumentar o tempo de trabalho para poder aposentar, que é absurdo, pois as mulheres continuam fazendo muito mais o trabalho doméstico que os homens. Além disso, o valor do benefício vai cair. Hoje, elas se aposentam com 80% do valor da ativa e esse valor pode cair para metade, dependendo do tempo de contribuição. Hoje se exige 15 anos de contribuição porque se reconhece que há uma grande parte do trabalho sem registro. E como agora passa para 25, de repente? É obvio que as pessoas vão continuar com um período de contribuição menor e assim vão receber menos.

Tem ainda os aspectos relacionados à retirada de um dos dois benefícios, a aposentadoria ou pensão por morte. Isso vai afetar uma maioria absoluta de mulheres. A pensão por morte também reduziu, o que também prejudica as mulheres. Outro retrocesso é em relação ao Benefício de Prestação Continuada de Assistência Social, que beneficia pessoas que têm filho com algum grau de deficiência que impede sua inserção no mercado do trabalho. Eles estão propondo rever o valor do benefício, desvinculando-o do salário mínimo e além disso rever o grau de deficiência. Isso significa que quem vai ter que continuar mantendo o cuidado serão as mulheres, já que não há compartilhamento dos afazeres domésticos.

Que justificativas a proposta apresenta para equiparar o tempo de contribuição de homens e mulheres?

Eles dizem que aumentou a participação das mulheres no mercado de trabalho, reduziu a diferença salarial e reduziu o número de horas gastas com os afazeres domésticos. Todas três são fáceis de serem contestadas. Não cresceu tanto assim a participação das mulheres no mercado de trabalho – praticamente estacionou em torno de 42%. A diferença salarial reduziu muito pouco no último período, e em relação aos salários maiores essa diferença aumentou. A diferença se deu principalmente pela valorização do salário mínimo, mas agora com ele parando de valorizar, começa a aumentar o fosso entre as mulheres e homens de rendimentos menores.

E o terceiro que são os afazeres domésticos é absurdo: as mulheres continuam trabalhando o dobro na comparação com os homens. As mulheres trabalham em média 21 horas por semana e os homens 10h. E somando com o trabalho remunerado as mulheres trabalham 58 horas por semana e os homens 52, ou seja, as mulheres continuam trabalhando seis horas a mais que os homens por semana. Então essas três premissas são inválidas, porque os dados não colaboram com essa argumentação que o governo está usando para justificar essa equiparação.

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