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País das capivaras

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Moraes tem histórico de violência na condução da segurança pública de São Paulo, inclusive contra estudantes e sem teto
Moraes tem histórico de violência na condução da segurança pública de São Paulo, inclusive contra estudantes e sem teto - Marcelo Camargo - Agência Brasil
O Brasil está na mão do guarda da esquina

O Brasil está na barra dos tribunais. Mais grave ainda, na mão do guarda da esquina em suas mais variadas expressões. Da truculenta mão que bate em estudantes que buscam manter suas escolas funcionando com dignidade, ao vaidoso juiz de primeira instância que legisla como um Nero, trocando segredos risonhos com suspeitos enquanto lança chamas irresponsáveis sobre a economia e a institucionalidade. Polícia para quem precisa de política.

Não é um acaso que parte significativa da pauta nacional esteja vinculada a questões judiciais. O protagonismo conferido aos magistrados é um sinal evidente dessa quadra policialesca que tomou conta da nação. Da escolha de ministros à definição de políticas públicas, passando pela composição da mais alta corte do país, tudo traz o carimbo inevitável da judicialização e da marca teratogênica da desconfiança. Onde deveria contar o currículo, como reza nossa vã meritocracia, hoje vige a capivara - termo popular para a folha corrida de “serviços” prestados.

O mais recente exemplo desse destino parido pelo arbítrio tem sido a movimentação em torno da indicação de Alexandre de Moraes para a vaga de Teori Zavascki no Supremo Tribunal Federal. Haja lambança. A começar pela escolha do personagem. Pela cronologia: o candidato tem histórico de violência na condução da segurança pública de São Paulo, inclusive contra estudantes e sem teto; mostrou-se inepto frente à crise dos presídios; e mente de forma irresponsável, sobre o que fez e o que não fez. Negou pedidos de ajuda de governadores, que havia recebido e respondido oficialmente. Forjou currículo Lattes e foi plagiário em vários de seus trabalhos acadêmicos. Furou fila e deu nó no tempo: foi doutor sem ser mestre e iniciou o pós-doutorado antes de ser doutor. Foi, como Porcina, sem nunca ter sido.

Só por aí já se mostrava inadequado. Além disso, traços de caráter e ideologia o descredenciam para a função: fala demais e de forma indevida, deixando dúvidas se se contentará em falar apenas nos autos; quebrou sigilo de ação estratégica da PF por arrogância em comício eleitoral; tem vínculos partidários com investigados na fila de processos que deve herdar. Para completar, o que talvez seja o grau máximo de sua desqualificação, não carrega com ele a necessária vocação para a primazia do público sobre ao privado. Em meio a uma grave crise da segurança pública, se achou liberado de cumprir sua função de ministro da Justiça, deixando a pasta acéfala, para embarcar na cabalagem de votos e beija-mão de senadores, inclusive a bordo de barco ancorado em suspeita moral.

Na mesma levada, o Estado policialesco dá as caras na escolha do ministro da Justiça que herdará a pasta de Alexandre. Os balões de ensaio e indicações são sempre vazados pela conveniência em estabelecer um comando mínimo nas ações judiciais em curso contra integrantes da base do governo, sobretudo na Lava Jato, mas não apenas nela. Ministros são indicados, nomeados, caem, ganham foro privilegiado, sempre seguindo o jogo das possíveis ações de paralisação ou procrastinação que serão capazes de operar. Pelo visto, é preciso reconhecer, Moraes foi o último a ganhar emprego pela capacidade de combater o crime, mesmo que tenha sido o uso de canhão institucional para matar um mísero mosquito chantagista de quinta categoria que importunava a recatada – nem tanto assim.

Injustiças legitimadas

A inspiração autoritária segue em infindáveis exemplos. No oferecimento generoso das forças de segurança e do Exército para os chamados distúrbios da ordem pública, mesmo se ela for herdeira das políticas de austericídio implantadas sem apoio ou debate com a população. O Exército nas ruas não é uma memória tranquilizadora. Sobretudo quando se pensa que pauta do desconforto social vai migrar em breve do medo do assalto para o sentimento universal de injustiça que cavalga as reformas trabalhistas e da previdência.

Recentemente, outro fantasma andou deixando de assombrar a memória para se corporificar no correr dos dias. A censura prévia foi ativada em torno do caso da captura de imagens da primeira dama e de achaques envolvendo nomes próximos ao governo não eleito, sob a justificativa da preservação da intimidade. Curiosamente, a mesma imprensa que foi esteio do golpe se viu ameaçada no coração de seu negócio – e reagiu. Como dizia o filósofo francês Jean-Paul Sartre, os burgueses são capazes de compor com tudo e com todos, menos com atos que retirem dele a condição de burgueses.

A escaldada autoritária se dirige ainda para temas como a educação, com a insistência apenas taticamente apaziguada da escola sem partido; e os direitos civis e humanos, em questões como a recrudescência do racismo e a afronta aos direitos de minorias. Chega ainda ao Congresso, por meio do bypass de projetos como o do Ministério Público e suas medidas anticorrupção, encaminhado como emenda popular, quando na verdade traz com ele a marca do populismo e da condução espúria, sem qualquer amadurecimento com a base social que assinou o pedido em razão de campanhas levadas a cabo pelos meios de comunicação.

Em poucos meses de golpe, o país viu retroceder o jogo político civilizado para aquilo que mais importa num Estado de exceção: convencer que o arbítrio é justo.

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