Antigo ofício, novas práticas. O ator João das Neves está novamente no palco aos 83 anos de idade e experimenta novidades para a produção. Através do site Benfeitoria, a montagem da peça está sendo financiada por doações. A meta é atingir R$ 15 mil, mas “Lazarillo de Tormes” já está em cartaz.
“Por questões burocráticas da Secretaria Municipal de Cultura acabamos não conseguindo a liberação do patrocínio. Mas não íamos parar a peça por isso”, comenta o ator, que também é diretor e roteirista da peça. A campanha de doação está aberta até 30 de março. A peça já está sendo apresentada nas sextas, sábados e domingos até 19 de março no Teatro Francisco Nunes, em BH.
Um quase herói
“Lazarillo de Tormes” foi escrito entre 1500 e 1600 na Espanha e é um dos primeiros textos a ter como personagem principal um “anti-herói”, ou seja, um herói sem virtudes clássicas de herói. “Os personagens são engraçados e ao mesmo tempo dolorosos”, explica João das Neves. A peça fala sobre as desventuras de um menino miserável que precisa sobreviver e se mete em variadas confusões.
O roteiro nasceu de um texto encontrado no ano 2000 por dois operários que derrubaram acidentalmente a parede de uma velha mansão na Espanha, descobrindo ali uma biblioteca escondida há 400 anos. O texto provavelmente foi escondido para ser salvo das fogueiras da Inquisição da Igreja católica, que proibia livros que não tivessem aval do reino.
João das Neves adaptou a obra ao terreno brasileiro. A peça ganhou trejeitos de circo e um texto em cordel, poesia típica do Nordeste. “É assustador em como a peça se parece com o Brasil atualmente. A situação do Lazarillo se repete muito com os meninos de rua daqui, que tem que se virar para morar na rua e acabam reféns do tráfico ou de pequenos roubos”, conta o ator.
A quem for assistir à peça, a promessa é de risadas e de reflexão. Apesar das situações engraçadas de Lazarillo, o espectador é levado a ver a tragédia por detrás delas. “A peça te coloca naquela situação de riso, mas que depois dá até uma dor no coração de estar rindo da miséria”, comenta. João divide o palco com Glicério do Rosário, Rodrigo Cohen e bonecos de Paulo Emílio e a direção musical é de Titane e André Siqueira.
Quem é João das Neves?
O ator nascido no Rio de Janeiro (RJ) foi um dos mais importantes nomes do teatro chamado de protesto brasileiro e um dos fundadores do Grupo Opinião, em 1964. Na primeira montagem da companhia, João das Neves e Augusto Boal dirigiram a peça “Opininiando”, com a participação de Zé Keti, João do Vale, Nara Leão e Maria Bethânia, em plena ditadura militar.
João das Neves é diretor, ator e escritor, e já levou ao palco peças como Besouro, Cordão de Ouro e Galanga Chico Rei, em parceria com Paulo César Pinheiro; Zumbi, de Augusto Boal; A Farsa da Boa Preguiça, com texto de Ariano Suassuna; e mais recentemente a peça Madame Satã, em parceria com Rodrigo Jerônimo, na versão adaptada para o Oficinão do Galpão, em Belo Horizonte.
Confira entrevista com João das Neves, sobre a “Lazarillo de Tormes”, em cartaz em BH:
“É assustador ver como o texto se parece com o Brasil de atualmente”
Brasil de Fato MG - Pode falar um pouco da peça?
João das Neves - A peça é baseada num clássico espanhol de mesmo nome, do século XVI, portanto precedeu Dom Quixote e romances da Idade Média para cá. Trata de um momento de miséria muito grande na Europa, quando as pessoas miseráveis eram perseguidas. O Lazarillo inaugura a série dos chamados anti-heróis, aqueles personagens que têm que se virar na vida. São engraçados e ao mesmo tempo dolorosos. A peça te coloca naquela situação de riso, mas que depois dá até uma dor no coração de estar rindo da miséria.
Qual a atualidade dessa peça?
É assustador em como isso se parece com o Brasil atualmente. A situação do Lazarillo se repete muito com a dos meninos de rua daqui, que têm que se virar para morar na rua e acabam reféns do tráfico ou de pequenos roubos. É admirável como a miséria acaba se perpetuando por tantos séculos. Bem aqui em nosso país, estávamos tendo algumas melhorias justamente para essas pessoas e lá vem um golpe.
Vai ser através de financiamento coletivo, certo?
Por questões burocráticas da Secretaria Municipal de Cultura acabamos não conseguindo a liberação do patrocínio. Mas não íamos parar a peça por isso. Vamos fazer no peito e pedimos que amigos e apoiadores nos ajudem a bancar o mínimo. Espero também que ganhemos alguma coisa, para não ficar como o Lazarillo (risos). Mas a falta de verba não ia impedir e não nos impediu.
Aos 60 anos de atuação no teatro, você ainda tem frio na barriga quando sobe no palco?
Frio na barriga propriamente não, eu tenho é calor (risos). Tenho muita experiência, mas a estreia dá sempre uma adrenalina. É inevitável que a gente fique nervoso quanto à recepção do público, coisas que não estão bem testadas. Eu escrevi, dirigi e atuo na peça. É tanta coisa na cabeça que o frio na barriga passa até despercebido.
Você faz teatro político?
Teatro político não, eu faço teatro. Vivo num país chamado Brasil e é impossível não se preocupar com as coisas que acontecem. E isso é matéria prima do teatro. Obviamente é um teatro profundamente preocupado com o caminho que seguimos e a nossa cultura. É político sim, na sua essência, como tudo que se faz voltado ao interesse coletivo. Mas não estou dentro de uma determinada vertente.
Você participou muito, em 2016, da ocupação da Fundação Nacional de Artes (Funarte) em BH, que aconteceu logo depois da extinção do Ministério da Cultura pelo governo não eleito de Michel Temer. Como avalia essa experiência?
Tem uma série de coisas positivas e negativas. A ocupação da Funarte foi a primeira resposta a esse governo ilegal, que tomou posse através de um golpe, e começa imediatamente a agir contra direitos adquiridos. A resposta imediata das pessoas da cultura foi importante para dizer que estamos alertas. A própria ocupação em si foi uma experiência boa, se vivia uma horizontalidade de decisões. Tudo era decidido com todo mundo. Problemas domésticos eram tão importante quanto problemas políticos. Parece que era um microcosmo do Brasil. Todos os problemas que existiam fora passaram a existir dentro também, o que acabou trazendo algumas dificuldades graves. Não impedíamos ninguém de entrar na ocupação, e ela está em um lugar que tem tráfico, prostituição, moradores de rua e pessoas que tinham interesse em tumultuar a existência da ocupação. Lidar com essas contradições foi difícil e rico. Ao mesmo tempo, conseguimos apresentar mais trabalhos lá do que a Funarte fez o ano todo. Tudo de graça. Mas um “de graça” que valeria a pena e renderia frutos posteriores.
Qual sua opinião sobre o MINC de hoje?
Existe? (risos) Esse governo é ilegítimo, tanto governo quanto o ministério. Não pode haver boa gestão de governo que nasce de um ninho de cobras.
Edição: Joana Tavares