Em fevereiro, foi lançado o documento “Previdência: reformar para excluir?”, fruto do trabalho de cerca de 40 especialistas, que surgiu por iniciativa da Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP), do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) e da Plataforma Política Social. O objetivo é subsidiar ações do movimento social, sindical e dos parlamentares, apresentando argumentos técnicos contrários à PEC 287, proposta de reforma previdenciária do governo não eleito de Temer (PMDB). O material está disponível aqui.
O Brasil de Fato MG conversou com o responsável pela redação final do texto, o economista Eduardo Fagnani (Unicamp). Para ele, os discursos pró-reforma de Temer baseiam-se em um conjunto de falácias, repetidas à exaustão pela grande mídia sem o devido espaço para o dissenso. Ele aponta, ainda, a necessidade de ampliar o debate com a população e organizar a pressão sobre os parlamentares junto às suas bases eleitorais.
Impossibilidade de se aposentar
Essa reforma significa o fim da proteção na velhice. Se ela passar, ninguém mais terá acesso à aposentadoria no Brasil, pois serão necessários 65 anos de idade e 49 de contribuição para a aposentadoria integral, ou seja, seria preciso entrar no mercado de trabalho aos 16 e ficar ininterruptamente contribuindo durante quase meio século. Para acessar a aposentadoria parcial, serão necessários 65 anos de idade e 25 de contribuição. Isso é absolutamente incompatível com o mercado de trabalho brasileiro, onde mais de 40% dos empregos são informais, sem carteira assinada. Em estados mais pobres, cerca de 65% dos empregos são informais. Além disso, temos uma rotatividade muito grande. De tempos em tempos, os patrões mandam trabalhadores embora e depois contratam por um valor muito menor. Em média, de acordo com estudos do Dieese, uma pessoa consegue contribuir, em um ano, cerca de 9 meses. Só por esse dado do mercado de trabalho, vemos que dificilmente uma pessoa conseguirá se aposentar.
Trabalhadores do campo
A situação é ainda mais grave quando se faz com que a mesma regra valha para o trabalhador rural, que hoje tem cinco anos a menos, por conta das condições de trabalho no campo. O mesmo acontece com trabalhadores da educação, policiais, bombeiros. Mas o caso do trabalhador do campo chama a atenção porque ele vai ter que contribuir mensalmente, mas o regime de safra da agricultura familiar não permite que ele tenha dinheiro todo mês. Ele trabalha um período, tem a safra e, hoje em dia, paga ao INSS sobre uma porcentagem da produção. Com essas regras, como vai se aposentar?
Modelos europeus
O governo diz que quer tomar como modelos países europeus, só que as regras propostas são mais duras que as da Europa. Não dá para comparar países que são mais igualitários com o Brasil. Por exemplo, a expectativa de vida média brasileira é 75 anos, mas em muitos países é 82, 83. Só em 2060 teremos um padrão semelhante ao deles.
O nosso PIB per capita é cinco, seis vezes menor que o deles. Além disso, somos um país heterogêneo regionalmente. Se a expectativa de vida nacional é 75 anos, em mais da metade dos estados da federação ela é inferior a isso. Se compararmos o Piauí a Santa Catarina, veremos dois mundos distintos. A heterogeneidade também pode ser percebida em um município. Em São Paulo, a expectativa de vida é 75, 76 anos; nos bairros mais ricos, 79 anos; mas, em cinco distritos, é 54 anos. Então, como se pode adotar regras superiores às dos países desenvolvidos em um país tão desigual e heterogêneo?
As mentiras que o governo conta
Essa reforma parte de três premissas equivocadas. A primeira é certo “terrorismo demográfico”, que diz que as pessoas vão envelhecer e isso seria uma catástrofe. Não é verdade. Diversos países enfrentaram essa questão sem destruir seu sistema de proteção social. Existem alternativas técnicas e nós mostramos isso.
Outro mito diz que existe um déficit explosivo na Previdência e que esse déficit vai acabar com o sistema fiscal brasileiro. Na verdade, não existe déficit, se for cumprido o que está na Constituição, é simples assim. O fato é que, desde 1988, nenhum governo cumpriu rigorosamente o que manda a Constituição.
O terceiro mito é de que a Previdência é o maior item do gasto público. Isso é mentira. Por exemplo, em 2015, gastamos com o pagamento de juros R$ 513 bilhões, mas, com a Previdência, gastamos R$ 460 bilhões. Os juros beneficiam uma centena de rentistas e a Previdência beneficia, direta ou indiretamente, de 90 a 100 milhões de pessoas.
Os defensores da reforma dizem que o gasto previdenciário brasileiro é um ponto fora da curva, algo muito elevado na comparação internacional. Não é verdade. Para provar isso, eles inflam os dados, somando gastos do INSS, gastos da Previdência do servidor público municipal, estadual e federal e gastos da Assistência Social. Juntando tudo isso, dá 13% do PIB. Na verdade, o gasto previdenciário no Brasil é de 7,5% do PIB. Então, há muita desonestidade intelectual.
Outro mito diz que o Brasil é o único país do mundo que não tem idade mínima para a aposentadoria. É mentira! Desde a Emenda Constitucional 20, de 1998, foi introduzida a aposentadoria por idade: 65 anos para homens, 60 para mulheres, com 15 anos de contribuição. Hoje, 70% das aposentadorias são por idade e 30% por tempo de contribuição.
Mais um mito: dizem que a aposentadoria no Brasil é precoce. Não é verdade! A reforma de 2015 criou a regra 85/95 progressiva, até chegar a 90/100. A partir de 2026, para um homem ter a aposentadoria integral, ele precisa ter 65 anos de idade e 35 de contribuição. Já a mulher precisaria de 60 anos de idade e 30 de contribuição, por exemplo. Então, se havia alguma precocidade em aposentadorias por tempo de contribuição, isso foi corrigido em 2015.
Mídia golpista
A reforma é draconiana, excludente e feita com base em argumentos falaciosos e no terrorismo, no alarmismo, nessa ideia absurda de que, sem reforma, não haverá Previdência. O problema é que eles fogem do debate. Lançamos o documento há dois meses e, até agora, não houve sequer uma menção na grande imprensa.
A relação entre os donos da grande mídia e o sistema bancário é muito forte. A grande mídia no Brasil é partidarizada, ideológica, defende o interesse dos poderosos. O projeto deles é implantar o ultraliberalismo no Brasil e o golpe de 2016 foi uma oportunidade para fazerem isso, pois um projeto desses jamais passaria pelas urnas.
Agora, eles têm um ano e meio para fazerem tudo o que não conseguiram em 30 anos. É a reforma trabalhista, que vai fazer os direitos dos trabalhadores retrocederem em quase um século, é o teto de gastos de 20 anos da Emenda 95, é o aumento da Desvinculação das Receitas da União de 20 para 30%, é a reforma tributária e a reforma da Previdência. Você alguma vez viu a grande imprensa abrir espaço para quem diverge disso tudo? Há uma convergência entre os interesses deles e os demais detentores da riqueza.
Ora, não existe democracia sem debate amplo e plural de ideias. A mídia deveria cumprir esse papel, ouvir vários lados, proporcionar o debate, mas o que temos é uma ditadura do pensamento de um só lado, que é quem fala sozinho. Se eles ousassem debater conosco, não ficaria pedra sobre pedra dos falsos argumentos do governo. Querem aprovar a PEC 287 até abril porque, se deixarem a sociedade debater, a reforma não sai.
Quem ganha
Há dois grandes beneficiários dessa reforma da Previdência. Dizem que não existe almoço grátis, mas o Brasil fornece um banquete grátis aos grandes bancos internacionais. Em nenhum outro lugar do mundo alguém consegue ter uma remuneração excepcional, de 6%, 7% reais. Agora, para eles, não adianta ter a maior taxa de juros do planeta, também é preciso que o governo diga a esses agentes que temos a capacidade de pagar a dívida pública, que é lastreada em títulos. E a melhor maneira de fazer isso é criar um teto para os gastos sociais, reduzindo os gastos correntes do Brasil de 20% do PIB para 12%.
Isso é o mesmo que dizer aos banqueiros de todo o mundo: “Estamos abrindo um espaço de 8% do PIB para atender a vocês, fiquem tranquilos”. Ao retroceder em direitos e rebaixar o gasto social, o governo abre mais espaço no orçamento para a equipe econômica utilizar na gestão da dívida pública.
Já no âmbito da Previdência, o fato de o secretário Marcelo Caetano passar meses se reunindo com grandes fundos privados nacionais e internacionais é revelador. Vejamos o que acontece, por exemplo, no caso do setor público, nos municípios. Um prefeito não precisa abrir um fundo público. Ele contrata um banco, que faz um programa de aposentadoria privada para aqueles funcionários.
Ao contrário do lema oficial, que diz que é preciso “reformar hoje para preservar o amanhã”, na verdade, estão reformando para quebrar o INSS. Haverá uma queda brutal de receita. Se 40% da força de trabalho não contribui, porque já é informal, com essa recessão profunda, o desemprego, a reforma trabalhista, o contingente de trabalhadores na informalidade vai aumentar e muitos não vão querer mais contribuir. Um menino de 20 anos pensa que, se não vai usar, não vale a pena pagar o INSS. O marketing já diz que a Previdência pública é uma porcaria e que os planos privados são maravilhosos. Muita gente irá para o setor privado. Só com essa campanha que o governo fez, já houve um aumento brutal do número de pessoas que, iludidas, passaram a fazer planos privados, achando que terão uma proteção.
Previdência privada não resolve
O plano privado dá uma complementação. Agora, se uma pessoa sofrer um acidente, eles não dão a cobertura, não têm auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez, por exemplo. Uma questão importante: se eu pago um plano, quanto ele vai render por ano? 5% ao ano? E qual é a taxa de administração do banco privado? Há taxas de 3%, 4%. Outra questão: se o banco aplicar mal seus recursos, como aconteceu nos Estados Unidos durante a crise de 2008, o fundo vira pó e acabou o dinheiro! Isso aconteceu no Chile e, hoje, os chilenos debatem a reestatização do sistema. Então, não há garantias e as pessoas mal sabem qual é a taxa de administração, mas acham que estão protegidas.
Chegar aos parlamentares
Uma estratégia importante para barrar essa PEC é conscientizar as pessoas, pois aí está uma questão muito próxima, que elas entendem. Além disso, a pressão tem que se dar nas bases dos parlamentares, procurando as regiões onde eles disputam votos para pressioná-los ali. Vamos chamá-los para uma assembleia, uma audiência pública, divulgar seus nomes, dizer a eles que não concordamos com a PEC 287. Ano que vem, esses parlamentares vão lá pedir voto. Então, é preciso fazer com que fiquem com medo de não serem eleitos nunca mais.
Edição: Frederico Santana