A Polícia Militar realizou, na noite de 9 de abril (domingo), mais uma ação no viaduto Santa Tereza, no Centro de Belo Horizonte. Cerca de 200 jovens, em sua maioria negros, se reuniam no local quando a PM chegou, com cerca de 8 viaturas, e colocou os jovens nos muros para serem revistados. Uma jovem indignou-se com a violência com que os policiais os tratavam e perguntou os motivos da abordagem. “Eu sou cidadã, dona de direitos. Não vou encostar e nenhum policial vai colocar a mão em mim”, teria dito, conforme o Boletim de Ocorrência.
Ayana Omi Amorim de Oliveira, de 22 anos, foi imediatamente arrastada e detida pelos policiais militares, segundo mostram vídeos, e acusada de “crime de desobediência”. Quando Ayana passou a ser arrastada pelos policiais e estes usavam gás de pimenta contra pessoas próximas, outras três mulheres tentaram defendê-la, com palavras, e foram também algemadas e detidas. Romara Eleonora Lima, de 22 anos, Laryssa Pires Martins, de 18 anos, e Maria Clara Martins Gontijo, 18 anos, também foram fichadas por desobedecer ordens policiais.
Diferente de outros casos policiais, neste não há grandes contradições entre a versão da polícia e das pessoas detidas. Elas foram presas por questionarem e tentarem se defender da abordagem policial, que elas consideraram “violenta e racista” e os policiais consideraram “de rotina”.
Elas: a humilhação e a resistência
“É bom ressaltar que foram as mulheres que ficaram o tempo inteiro interrogando. Porque para os meninos negros a batida violenta já é ‘normal’, infelizmente”, lamenta Ayana. “O tratamento também foi agressivo porque os policiais viram que estávamos conscientes dos nossos direitos e deveres. Como eles não sabiam argumentar, a forma de nos calar foi nos algemando. Mas não deu muito certo... Eu continuei falando até ficar sem saliva”, diz.
Na delegacia, elas ficaram por mais de seis horas e o clima violento continuou, segundo relatam. Suelaine Teixeira de Araújo, advogada, foi até o órgão acompanhar o caso e foi surpreendida por mais um abuso policial. “Cheguei pela porta lateral da delegacia. O advogado que estava comigo entrou tranquilamente. Quando fui passar, um policial tomou meu celular violentamente e começou a vasculhar informações. Eu disse que era advogada e mostrei minha carteira da OAB. Ele reteve também a minha carteira”, relata. “Em toda a situação a única palavra que dirigiu a mim foi ‘vadia’”.
De acordo com o advogado e integrante da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Daniel Deslandes, o policial poderá ser enquadrado no artigo 10º da Lei 9296, como interceptação de comunicação telefônica ilegal, em processo movido pela OAB. “Eles vão aprender a respeitar advogado”, afirma.
Polícia que caça e polícia que protege
“Para nós fica uma ferida. Além da agressão física, fica algo interno. Já tem dois dias que eu estou sem dormir e comer direito. Estou com a cabeça saturada”, desabafa Ayana. Ela foi vítima de outro caso de preconceito em dezembro, quando dois meninos negros, ela e uma amiga foram discriminados e expulsos por funcionários do Shopping Cidade, situação que também repercutiu na mídia.
Para a ativista do movimento Hip Hop Polly Honorato, a situação mostra que a polícia possui diferentes objetivos, conforme o local de atuação. “No Brasil existem duas polícias: uma que protege e uma que caça. A que protege está nos bairros de classe média alta, e a polícia que caça é para as periferias. Por isso tratamentos diferentes também para os jovens pegos com drogas. Os ricos são tratados como usuários e os pobres são tratados todos como traficantes”, avalia.
Marcos Cardoso, escritor e integrante do movimento negro de BH, argumenta que a batida policial no viaduto teve a função de constranger jovens negros. “Como eles não podem nos impedir de estar nos bairros do centro da cidade, arranjam formas sofisticadas de ‘dizer’ isso”, afirma. Para ele, a ideia disseminada de que negros sempre têm relação com o crime, dá a “qualquer soldado na esquina o direito sobre a sua vida”.
O escritor lembra que a impunidade aos policiais reforça que continuem cometendo estes crimes, como no caso das chacinas da Candelária e de Vigário Geral, no Rio de Janeiro, e da Cabula, em Salvador. No total, 41 jovens foram assassinados, 16 policiais indiciados, e apenas um continua preso. “Primeiro eles nos empurram para o gueto, e depois para a eliminação”, analisa.
O que pode ser feito
Contra as agressões feitas pelos policiais, a Ouvidoria da Polícia Militar de Minas Gerais detalhou relatório com os depoimentos das cinco mulheres. As principais denúncias contra os 26 policiais envolvidos na operação são: abuso de autoridade, lesão corporal e violação de privacidade. Segundo o coordenador da ouvidoria, Paulo Alckmin, os indícios passam agora por investigação quanto à sua veracidade e podem ocasionar punições aos PMs.
O procedimento da Ouvidoria foi aberto e será enviado à Corregedoria Geral da PM, à Secretaria Estadual de Direitos Humanos e ao presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais.
A solidariedade é negra
Elas foram feridas, mas não sozinhas. Naquela noite de domingo as quatro mulheres iam sendo levadas pelos policiais e atrás delas foram as 200 pessoas que estavam no viaduto Santa Tereza, que viram a ação da PM, e resolveram permanecer à frente da delegacia para prestar apoio. “Foi tipo um abração”, diz Laryssa com satisfação. “Achamos que iam ficar um pouco e ir embora, porque muita gente trabalha, mas todo mundo esperou até a gente sair às 4 da madrugada”, completa Romara.
Todas concordam que a presença das companheiras e companheiros fez com que se sentissem mais fortes e seguras. Ao contrário do resultado que os jovens negros organizados causaram nos policiais. “Diziam palavras de menosprezo à função pública policial militar”, reclamaram os PMs no Boletim de Ocorrência. Os gritos de “polícia opressora” e “covardes” ofenderam, mas “filho de polícia também fuma maconha” deve ter atingido um nível de insatisfação particular.
Edição: Joana Tavares