Depois que o presidente não eleito, Michel Temer (PMDB), foi posto na berlinda pela ex-aliada, a TV Globo, a mudança de governo tornou-se uma questão de tempo. Nada menos que 15 pedidos de impeachment já foram protocolados, enquanto a base governista se dissolve no Congresso.
“Existem esforços desesperados, por exemplo, do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM). Aparentemente, o DEM é ainda o maior aliado de Temer. Rodrigo Maia está, com os poderes imperiais que tem a Presidência da Câmara, impondo uma agenda de normalidade quando, na verdade, todos nós sabemos que estamos atravessando um período extraordinário, com um morto vivo na Presidência da República”, comenta a deputada federal Margarida Salomão (PT-MG).
Com a iminente queda de Temer, surge a questão sobre quem o sucederá à frente do governo federal. A Globo e a maioria do Congresso defendem eleições indiretas, alegando ser a única saída constitucional. Em tal modalidade, o novo presidente seria eleito por uma junta eleitoral no Congresso.
Porém, milhares de pessoas em todo o Brasil exigem a convocação de eleições diretas, quando a própria população é chamada a decidir. Movimentos vão além e reivindicam que as eleições sejam gerais, isto é, que outros representantes do nível federal também passem pelo crivo das urnas, e que as medidas do governo Temer sejam revogadas.
Será que as eleições diretas têm fundamento jurídico? Se forem convocadas, qual deve ser o procedimento para organizar o pleito? Como será o mandato do/a presidente eleito/a com voto popular?
Caminhos
Do ponto de vista legal, se Temer renunciar ou sofrer impeachment, novas eleições estão previstas no artigo 81 da Constituição. Nele consta que, após dois anos do mandato eleito, o presidente da Câmara convocaria o Congresso a votar. Portanto, para que o povo possa escolher, seria necessário aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), alterando a redação do artigo.
Duas propostas dessa natureza tramitam no Congresso. Na Câmara, a PEC 227/2016, do deputado Miro Teixeira (Rede-RJ), aumenta de dois para três anos o período no qual eleições diretas podem acontecer, em caso de vacância no mandato eleito. No senado, outra PEC (67/2016) com a mesma finalidade foi apresentada pelo senador Reguffe (sem partido).
Outra possibilidade de eleição direta é discutida no Supremo Tribunal Federal, caso a chapa eleita em 2014 sofra cassação. Um ação movida pelo PSDB no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) acusa a chapa Dilma/Temer de ter cometido abuso do poder econômico e político na campanha eleitoral de 2014. Segundo a acusação, teria havido desvio de finalidade em pronunciamentos oficiais da presidenta, utilizados em promoção da candidatura, entre outras irregularidades. O TSE julga a ação a partir do dia 6 de junho.
Porém, para o constitucionalista e professor de direito da UFMG José Luiz Quadros Magalhães, o debate central não se dá no plano jurídico, mas político. “No golpe, houve uma utilização de instrumentos institucionais para afastar a presidenta democraticamente eleita. A discussão deixou de ser jurídica, pois estamos vivendo um caos institucional, um teatro no qual as pessoas fingem que estão cumprindo a Constituição. Veja bem: os juízes decidem afastados da lei, o Supremo inventa normas e o Legislativo viola direitos fundamentais na reforma trabalhista, na reforma da Previdência. Mais da metade dos legisladores respondem a processos e temos, ao mesmo tempo, um governo de homens proprietários, ricos, todos processados”, explica o professor.
Para ele, as reais condições para provocar novo pleito dependem da mobilização popular. “Desde o surgimento da teoria constitucional clássica, na época da Revolução Francesa, a Constituição nasce a partir de uma revolução e estabelece um novo ordenamento jurídico. Quando esse ordenamento não serve mais, a única possibilidade de ruptura é um movimento popular radicalmente democrático. Então, para haver eleição direta neste momento, precisamos de um movimento que sustente essa pauta, ocupe as ruas e não saia mais delas”, aponta.
Única saída possível
José Luiz Quadros afirma que existem precedentes na história latino-americana para um processo como esse: “Nós temos na história recente processos importantes que geraram constituições radicalmente democráticas, a partir de lutas populares insistentes. Foi o caso da Bolívia, em 2009, do Equador, em 2010, e da Venezuela, em 2000”. Ele aponta a necessidade de eleger não apenas novo/a presidente/a, mas também novos representantes no Legislativo: “Esse Congresso não tem legitimidade, mais da metade responde a processos criminais”.
Esse também é o ponto de vista das organizações populares que defendem a pauta e nela veem o único caminho, no curto prazo, para superar a crise. “As eleições diretas para presidente e um novo Congresso são uma necessidade democrática. Ou seja, só as urnas podemos repactuar um governo que represente os interesses da maioria e para ter legitimidade de realizar mudanças a favor do povo, para sairmos da crise econômica”, afirma João Pedro Stédile, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Frente Brasil Popular.
Diretas Já: uma luta histórica
A luta pelas “Diretas Já”, em 1984, foi um dos movimentos com maior participação popular do Brasil. Vivendo um golpe militar desde 1964, o país já não escolhia um candidato a presidente desde 1960.
As primeiras movimentações para as Diretas aconteceram em 1983, quando foi apresentada a primeira emenda constitucional sobre o tema, de autoria do deputado Dante de Oliveira. Com diversos apoiadores no meio político e com a grande insatisfação do povo com o fim do voto direto, logo os atos defendendo a democracia se alastraram e reuniram milhões de pessoas em todos os estados. Os shows de protesto, peças de teatro e comícios estavam sempre lotados – o maior deles ocorreu no Rio de Janeiro, em 10 de abril de 1984, quando em apenas seis horas um milhão de manifestantes se concentrou na Candelária.
A emenda de Dante foi votada em 25 de maio de 1984, em sessão tensa, que contou com a participação de artistas e políticos. Ainda assim, a Câmara dos Deputados não aprovou as eleições diretas para aquele ano. Com a derrota, restava aos articuladores do movimento negociar o fim do regime militar.
Em 1985, a ditadura era finalmente encerrada, mas Tancredo Neves se tornava presidente em meio a uma disputa interna, sem o voto do povo. Ele não chegou a assumir o mandato, pois morreu antes da posse. Em seu lugar, governou o então vice-presidente, José Sarney.
Só em 1989 aconteceu a primeira eleição direta após tempos sombrios. O presidente eleito e posteriormente denunciado por corrupção, Fernando Collor de Mello, acabou renunciando ao cargo enquanto um processo de impeachment contra ele estava em andamento. Quem assumiu o cargo foi, novamente, o vice: Itamar Franco.
Apesar da não aprovação, a campanha por Diretas Já é considerada historicamente uma vitória, por marcar a volta da politização da sociedade brasileira e impulsionar o processo de redemocratização do país, como afirma Ricardo Gebrim, da direção nacional da Consulta Popular e da Frente Brasil Popular. “Mesmo sem a conquista das Diretas, o movimento inaugurou todo um ciclo político da esquerda. Foi, inclusive, decisivo para alterar planos que a ditadura tinha e trouxe muitas conquistas na Constituição de 1988”, afirma.
Edição: Joana Tavares