Os três poderes estão agindo de forma ilegítima
A escalada de retrocessos contra a democracia e os direitos no Brasil chegou ao ponto sem volta. Depois da destruição da CLT e da condenação do presidente Lula, sem provas e com argumentação cínica, não se pode mais pedir ao povo apenas mobilização, até que a próxima agressão o atinja como um soco. O momento decretado pode não ser de ódio, mas é de confronto. Os poderes constituídos da república deram, numa semana, sua cota máxima de expressão de ilegitimidade.
O Legislativo vira as costas para a sociedade e aprova uma reforma trabalhista contra os interesses dos trabalhadores, conforme mostram todas as pesquisas. Os senadores estavam lá para representar os eleitores e aprovaram medidas que beneficiam seus financiadores. Não foi necessária sequer a participação do presidente não eleito na coordenação. Já descartado, Temer viu que o projeto que arrogava como seu, na verdade, fez dele, enquanto foi necessário, apenas um moleque de recados no jogo político. Um estafeta da infâmia.
Os senadores não votaram por pressão, mas de acordo com suas convicções. O que demonstra um divórcio absoluto na democracia representativa brasileira. Em tempos normais, os parlamentares têm receio de perder o laço, mesmo artificial, que os liga até suas bases. Nos momentos de exceção, passam por cima da confiança para afirmar sua razão de ser. Como salientou a senadora Gleisi Hoffmann, os senadores são, em essência e em sua maioria, portadores de uma mentalidade escravocrata.
A cobertura da imprensa chegou ao seu ponto mais baixo. Em jornalismo, o ponto mais baixo é a mentira. Jornais e TVs foram unânimes em apresentar a reforma trabalhista como uma conquista da modernidade nas relações de trabalho, escamoteando as perdas e apontando sempre a perspectiva de retomada do emprego. A vergonha, costurada com gráficos anódinos, desinformação deliberada dos prejuízos para o trabalhador e disputa para dar opiniões por parte de jornalistas orgânicos (uma contradição em termos, já que não há imprensa a favor), foi consumada com a apresentação da resistência das senadoras como um ato de tumulto. A ocupação da mesa diretora do Senado foi a única luz emitida pela classe política, inclusive à esquerda.
No Executivo, o golpista ora golpeado, como é típico na ética dos dedos-duros, retomou de forma desavergonhada todos os expedientes de chantagem para dificultar o andamento da denúncia de corrupção que pesa como uma mala de dinheiro sobre ele. Temer vem liberando recursos para emendas paroquiais, depois de congelar gastos sociais; mudando representação em comissões para obter maioria de cooptados confiáveis; ameaçando parlamentares com punição em caso de votos contrários.
O presidente não eleito vem interferindo na Polícia Federal, contingenciando recursos, e criando uma célula de proteção dentro da PGR e do STF, à socapa, como cabe aos covardes. Numa postura hierática, antipática e aparentemente desligada da realidade dos fatos, tem ainda derramado orgulho sobre todos os resultados de seu programa, que aprofundou a recessão, agravou o desemprego e levou à perda de confiança internacional, como demonstrou sua participação escanteada até na foto da reunião do G-20.
Em alguns setores, a perda de relevância é tão grande que nem se nota a ausência de comando. Como no caso da cultura, sem ministro depois de três demissionários e de uma atuação constrangedora. A única ação executiva do governo é tentar manter presidente e ministros indiciados no cargo, para preservar prerrogativas de foro.
No Judiciário, depois de uma série de atitudes que evidenciaram a fraqueza do STF, a começar pela farsa do impeachment, foram se sucedendo atitudes partidarizadas e classistas. Sucessivas manobras protetivas a Aécio Neves, hoje nome a ser evitado em seu partido (e até em sua casa), foram sendo enfileiradas depois da denúncia contra ao senador tucano. Entregue como contrapeso ao foco nitidamente antipetista das operações policiais e judiciais, Aécio teve na própria Justiça que o investiga a acolhida tardia que não teve entre seus pares.
A condenação do presidente Lula na primeira instância de Curitiba escancara o partidarismo da Justiça brasileira. O julgamento não foi comandado por um magistrado isento, mas por um parceiro quase explícito da acusação. Nem mesmo a imagem clássica da tríade acusador-defensor-acusado se desenhou na mente das pessoas que acompanharam o processo. Foi sempre claro que eram apenas dois lados.
Sem entrar no mérito da sentença, analisada por especialistas que dissecaram seus defeitos jurídicos, pode-se ver na argumentação de Moro uma confirmação do preceito maquiavélico da necessidade de manutenção do poder pelo uso convicto da violência. Em lugar de combater com palavras e provas, fez uso da perfídia e do arbítrio de sua posição, independentemente da racionalidade do juízo.
Num dos pontos, numa escorregada freudiana, o julgador denega suas reais intenções: afirma que não teve prazer em condenar o presidente Lula. A denegação é uma forma de evidenciar um desejo, manifestando-o por meio de sua negação. Como não se espera de nenhum juiz que tenha gozo masoquista em condenar qualquer réu - caso em que a justiça seria retrocedida ao estágio de vingança pré-civilizatória - Moro só pode estar deixando escapar sua satisfação pelo dever cumprido. Não de julgar, mas de condenar.
Num contexto de tamanha ilegitimidade, não é de se esperar que o jogo prossiga de acordo com as regras do Congresso, do governo ou do judiciário. Não há democracia, não há república. Contra a hipocrisia e o cinismo é preciso inaugurar outro campo e outra disposição. Nas ruas. Sem paz nem amor.
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