Frente ao avanço de pautas e discursos conservadores, a 20ª Parada do Orgulho LGBT de Belo Horizonte (MG) responde com ousadia e traz o tema "Família e direitos: nossa existência é singular, nossa resistência é plural". Responde ainda à crítica de ser "só um evento", e recheia o mês de julho com dezenas de debates, exposições, shows, intervenções, rodas de conversas e encontros, na 4ª Jornada pela Cidadania LGBT.
No meio disso tudo, no último domingo (16), a parada reuniu mais de 80 mil pessoas em luta por direitos e democracia na Praça da Estação, centro da capital mineira.
Nesta entrevista, o educador Azilton Ferreira Viana, presidente do Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual (Cellos-MG), fala sobre os desafios da luta LGBT hoje.
Brasil de Fato MG: Por que a Parada escolheu o tema da família neste ano?
Azilton Ferreira Viana: Ao contrário do que se diz contra os LGBT, nós somos muito família. Na maioria das vezes, é sempre o filho gay, a lésbica, a travesti, que está ali com a mãe e o pai. Nós vamos celebrar 20 anos de parada. São 20 anos nas ruas pedindo direitos, clamando por cidadania, e ainda não conseguimos a plenitude disso. Acima de tudo, estaremos afirmando a democracia. Nunca foi tão necessário ocuparmos as ruas. Este é um momento crucial para o movimento LGBT. Vamos para a parada num misto de luta, reivindicação, mas também com uma consciência clara de necessidade de fortalecimento do processo democrático.
O processo de construção da parada inclui também uma série de atividades, ao longo de todo o mês de julho. Qual o objetivo?
Na verdade, sempre acusaram as paradas LGBT de serem um ‘carnaval fora de época’, micareta, como se as pessoas só se quisessem diversão, farra. Isso também. Nós celebramos nossas singularidades, e isso se expressa inclusive no corpo. Por isso que beijar, demonstrar afeto, para nós é muito importante. Mas é um ponto, não é apenas isso. O tema da parada gera uma série de debates. Estamos na quarta edição de uma jornada de cidadania LGBT. Uma jornada na qual o Cellos, em conjunto com diferentes parceiros, coletivos, grupos, conselhos de classe, universidades, dialoga com a sociedade sobre o tema do ano. Agora, todos os debates perpassam o tema da família, cada atividade com um viés particular. A gente pensou isso porque senão as pessoas que nos criticam teriam razão. A parada é um momento, dentro da jornada – que começou dia 30 de junho e vai até dia 30 de julho – no meio desse processo. Primeiro, para fortalecer o que já foi feito e também para dar mais fôlego e visibilidade para o que ainda vai acontecer.
Por que há tanta dificuldade em acessar dados em relação à população LGBT?
Uma grande entidade que contribui conosco é o GGB – Grupo Gay da Bahia – que levanta uma série de informações do Brasil inteiro. Eles fazem um relatório com os dados que saem na imprensa. Mas acreditamos que existam muito mais violações, além daquelas que eles conseguem acessar. Há uma subnotificação de casos de violência. Para nós isso é muito sério. O processo de invisibilização é sistemático. Aqueles que defendem a pretensa família, heteronomartiva, composta por homem e mulher, alegam que nós queremos destruir a família. Pelo contrário: veja o alto índice de casamentos de LGBT depois que foi permitido, a própria adoção de crianças. Mas nem esses dados conseguimos acessar direitos. E ainda lamentamos muito a violência, as mortes. E o pior: as pessoas LGBT são assassinadas duas vezes, devido à impunidade. Não há resolução dos crimes. E aí vai se invisibilizando cada vez mais. E muitas vezes se constrói a narrativa de que a vítima é ela a vilã, a culpada. Gostaria de falar sobre outras coisas, além de morte e violência, quero falar sobre emprego, sobre renda, sobre educação, sobre cidadania, sobre universidade... mas se não temos a garantia mínima, da vida, como vamos falar de outras coisas? E isso até hoje nos foi negado.
Quais os principais desafios para a população LGBT em Minas atualmente?
A gente começa a perceber um ensaio, ainda que tímido, de políticas públicas, como a criação da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania (Sedpac). É uma tentativa de pensar, de maneira conjuntural, um conjunto de ações, como política pública. Mas ainda está tímido, porque o conservadorismo se apropriou muito do Legislativo. Uma autocrítica que precisamos fazer é que nos preocupamos tanto com o Executivo, que esquecemos o Legislativo. Então agora voltamos nosso olhar para esse ator político e social porque ele tem interferido diretamente na nossa vida. E, mais grave, hoje corremos o risco de perder garantias que conquistamos lá atrás, há mais de uma década. Só que as pessoas às vezes não lembram como foi difícil, quais foram as lutas necessárias para essas conquistas. Uma delas é a garantia no nome social para pessoas trans – que foi um decreto presidencial. Esse desgoverno pode eliminar o decreto. Já tem projetos na Câmara de revogação de leis, como a união estável entre pessoas do mesmo sexo. E por aí vai. Estamos vivendo um retrocesso civilizatório. É difícil visualizar um processo pacífico no curto prazo. É preciso continuar fazendo o que a gente fez: ocupar as ruas, lutar com alegria, com nossas cores, com nossa diversidade, pela democracia. Isso que está em jogo hoje. Precisamos chamar a comunidade LGBT para ir para luta para garantir a democracia. Porque somente na liberdade democrática a gente se realiza.
Está crescendo entre a população LGBT a percepção de que a luta específica está ligada a uma pauta maior, de concepção de sociedade, de país?
A parada é construída coletivamente, aberta a quem quiser participar. Nas reuniões com os voluntários – que estão coma gente há mais de dois meses – a gente sente essa vontade de participar. Muitos jovens dizem que estão preocupados com o que está acontecendo no país e querem contribuir. Claro que há diferenciações entre as demandas dos gays, lésbicas, travestis, transexuais, bissexuais, mas uma coisa nos unifica para além de qualquer coisa: o conservadorismo religioso se fundamenta na ideia de que nós, todos nós, de que forma for, temos que ficar invisibilizados, nos espaços demarcados pra nós, nos guetos. Quando a gente começa a sair dos guetos, vai para as universidades, para o mercado de trabalho formal, isso incomoda. Porque nós somos a subversão do modelo vigente. Por isso a luta é tão importante.
O conselho estadual LGBT está funcionando? E qual a avaliação sobre o processo para instituir o conselho municipal?
O municipal a gente perdeu. Não foi uma derrota simplesmente, foi um massacre. Depois temos que inclusive avaliar sobre nossa atuação, entender melhor o que aconteceu. Em relação ao conselho estadual, o projeto chegou agora, no final de junho, na Assembleia Legislativa, depois de três anos de muita luta. Na parada de 2016, nós votamos, de forma simbólica, pela criação do conselho. E só um ano depois essa demanda começa a andar. E agora tem uma segunda luta: convencer o Parlamento mineiro de que isso é um direito, e não um favor à comunidade LGBT. Não é porque queremos ser diferentes. Mas é porque existem especificidades da comunidade LGBT que um conselho de direitos humanos – que tem que tratar de idosos, crianças, adolescentes, mulheres, igualdade racial, pessoas com deficiência - não tem condições de tratar. É preciso um conselho específico para discutir as questões temáticas. E é papel do conselho exercer controle social. Verificar se existem políticas, se elas estão sendo implementadas, cobrar dos gestores e responsáveis. Há uma ideia equivocada de que o conselho onera os cofres públicos, mas não é verdade. A participação é voluntária. O papel é de controle social e fiscalização da política, propor soluções. Agora o projeto passa pelas comissões e depois ainda vai para votação em plenário.
Como você avalia o avanço do conservadorismo também na área da educação, como o projeto “Escola sem partido”?
O projeto “Escola sem partido” é altamente fascista. Ele tolhe o debate sobre a questão da orientação sexual, das identidades de gênero, mas também tolhe o debate sobre as ideologias, sobre filosofia, sobre a história. Se no início a discussão era somente sobre a discussão da sexualidade, agora ele passa a dialogar com todo o contexto sociológico e político. E é uma mentira quando dizem que é “escola sem partido”, porque, na verdade, estão partidarizando a disputa, justamente quando colocam a fala no lugar dos vencedores, os empresários. Para eles não tem sentido ter uma população formada, consciente, que saiba dos seus direitos. Para eles é melhor ter massa de manobra, pessoas que não tenham consciência para entender os processos. Muito mais grave do que o fato de falar de sexualidade, é o projeto tentar formatar a vida humana. Não dá pra gente se pensar como cidadão em uma ausência de consciência crítica. É lamentável, mas isso tem crescido. Os pais, na crença que estão protegendo os filhos, estão na verdade os fragilizando cada vez mais. É um fascismo, um totalitarismo, e de forma institucionalizada.
A 20ª parada é convocada como LGBT. Mas há outras nomenclaturas, outras letras. Como é isso?
Nós usamos LGBT. Porque em 2016 tivemos a 3ª Conferência Nacional LGBT, que congregou mais de mil ativistas do país inteiro, discutindo vários temas. E esse foi um deles, foi uma pauta de discussão, exatamente porque têm surgido muitas coisas de fora, do contexto internacional. Mas na conferência, nós – gays, lésbicas, travestis, mulheres trans, homens trans, bissexuais, binários, não binários – todo mundo, pactuamos que a sigla seria LGBT. O movimento é dinâmico, plural, e cada vez mais coisas vão surgindo mesmo. Mas nós pactuamos que essa seria a sigla. Então qualquer atividade que o Cellos faça – embora reconheçamos a importância de novas perspectivas sobre a sexualidade humana – usaremos essa terminologia, LGBT, por respeito a esse pacto comum. É a defesa de um posicionamento político de uma série de entidades e ativistas do país inteiro. Mas é legítimo que novos coletivos sugiram e busquem novas inclusões. Aí temos que fazer o processo de discussão coletiva.
Edição: Frederico Santana