A empresa Samarco divulga, em suas peças publicitárias, o cadastramento de 23 mil famílias e indivíduos ao longo da Bacia do Rio Doce. O cadastro tem a função de mapear os bens materiais e imateriais perdidos com o rompimento da barragem de Fundão, há dois anos, pelos quais a mineradora terá que pagar. Mas o método não está resolvendo. Ao contrário, pode se transformar no motor de mais injustiças, segundo atingidos.
A mineradora começou a realizar cadastros logo após o rompimento da barragem, através de empresas terceirizadas. Em março de 2016, a Samarco criou a Fundação Renova, controlada por ela, Vale e BHP Billiton, que assumiu os trabalhos referentes à reparação e indenização dos atingidos, inclusive o Cadastro Integrado.
Perguntas que excluem
O Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA) da UFMG estudou o cadastro e elaborou um parecer com os principais problemas. Um deles seria que perguntas e opções de resposta se voltam a uma lógica urbana, impossibilitando que um trabalhador rural descreva corretamente suas perdas. Outro seria a orientação “patrimonialista”, ou seja, que mede as propriedades perdidas, mas não as perdas sentimentais, culturais e sociais.
Maloca ou barraco?
As famílias da cidade de Mariana passaram a ser a principal resistência ao questionário aplicado pela Samarco e empresas contratadas por ela. Luzia Nazaré é uma das atingidas da comissão composta por 8 comunidades da região e lembra que no cadastro original existiam absurdos como o mapeamento de pés de açaí, que não é próprio da região, e a indução ao erro na questão sobre moradia.
A Fundação Renova responde que “o fundamento das críticas [ao cadastro] assenta-se em uma premissa equivocada, pois o cadastro não é a única ferramenta de levantamento de informações utilizada”. Afirma ainda que 90% das demandas dos atingidos foram incorporadas. Atingidos não confirmam a informação, que ainda está sob análise.
Vitórias
Os atingidos conseguiram na Justiça, em outubro de 2016, o direito de suspender a aplicação do cadastro em Mariana. A partir de então, a Comissão passou por seis meses de trabalhos e reuniões intensas para reformular o cadastro, bem como elaborar novos instrumentos para levantar dados, com metodologias participativas. O objetivo foi garantir o direito do atingido falar sobre suas perdas.
“Foi uma guerra. Várias vezes os atingidos passavam mal porque víamos que a Samarco tratava nossa propriedade como lixo”, comenta Luzia, lembrando de quando ela própria passou por isso.
O cadastro passará a ser feito em cinco eixos: perdas materiais, atividades econômicas, bens coletivos perdidos (igreja, escolas, etc.), perdas imateriais e danos morais, e metodologia de aplicação e quem poderá responder o cadastro. O último ponto pode ser um dos balizadores para um acesso justo à indenização, segundo Ana Paula Alves, assessora técnica da Cáritas Brasileira regional Minas Gerais.
“O primeiro direito a ser garantido é de a pessoa poder fazer o cadastro, porque só poderá receber indenização quem está cadastrado”, explica Ana Paula. Em todo o restante da Bacia, a decisão de quem poderia responder ao questionário ficou com a própria Samarco. Essa situação pode ter enxugado o número de pessoas que poderiam requerer a reparação. Em Mariana, os atingidos conquistaram o direito ao cadastro amplo em 5 de outubro, no âmbito de uma ação civil pública.
Daqui em Diante
Os atingidos conquistaram também, em audiência judicial de 18 de outubro, o direito de que o cadastro seja aplicado por quem faz sua assessoria técnica, a Cáritas, acompanhada de um técnico operacional da Renova, que não poderá interferir na aplicação. A expectativa é que os trabalhos comecem no início de 2018. Segundo a Cáritas, em Mariana há aproximadamente 900 famílias a serem cadastradas.
Famílias organizadas podem garantir melhores indenizações
A militante do Movimento de Atingidos por Barragem Letícia Oliveira explica que a organização das famílias é uma das poucas garantias que os atingidos podem ter. “Há muitos acordos já conquistados, mas a empresa continuará abordando as famílias com propostas diferentes, mais rebaixadas. Se a família não está organizada, não tem a informação dos acordos e pode ficar prejudicada”, alerta.
Edição: Frederico Santana