No ano passado, as empresas responsáveis pela barragem de Fundão assinaram um acordo com o poder público, sem a participação dos atingidos, prevendo medidas para reparar ou compensar os danos. Para definir o foco das ações, adotaram o conceito de “impactados”. Segundo os atingidos, tal medida é uma forma de tentar diminuir a gravidade do que ocorreu e nega uma reivindicação histórica das vítimas da mineração.
Atingidos ou impactados?
No início de 2016, as empresas responsáveis pelo rompimento da barragem assinaram um Termo de Transação de Ajustamento de Conduta (TTAC) com os governos federal, de Minas e Espírito Santo, além de institutos e agências de regulação ambiental. À época, o acordo foi muito criticado por movimentos, que o consideraram uma negociação entre as empresas e governos, com metodologia própria da Samarco, feita pelo interesse da mineradora (documento disponível aqui).
Do TTAC surgiu a Fundação Renova, entidade vinculada à Samarco, cuja finalidade seria restabelecer as comunidades ou compensar as perdas. O documento também definiu como foco das ações os “impactados”, isto é, “pessoas físicas ou jurídicas e respectivas comunidades, que tenham sido diretamente afetadas pelo evento”. E listou, na sequência, um conjunto de situações como a perda de familiares, bens, capacidade produtiva, assim como danos à saúde e outros.
Também foram definidos os “indiretamente impactados”, ou seja, aquelas pessoas que “residam ou venham a residir na área de abrangência e que sofram limitação no exercício dos seus direitos fundamentais”.
Consultada pela reportagem no último mês, a Renova defendeu “que não se faz necessário o cadastramento, por meio do Cadastro Integrado, de todos os grupos especificados no conceito de atingidos, especialmente aqueles cuja reparação deve ser feita por meio de ações coletivas” e que “o cadastro não é a única ferramenta de levantamento de informações utilizada pela Fundação”.
Críticas
A definição de “impactados”, por outro lado, recebeu muitas críticas de movimentos e moradores. “O termo ‘atingido’ indica que são vítimas de grandes projetos que têm suas vidas transformadas de forma negativa. Ao se chamarem de atingidos, elas se tornam sujeitos políticos”, afirma Thiago Alves. Ele acrescenta que, se aceitasse esse termo, a empresa reconheceria seu conteúdo e, portanto, a opção por outro conceito tem uma intenção política clara.
“Além disso, não existe impactado direto ou indireto. Há diferentes impactos. Seja o impacto da lama que destruiu a casa, da lama que matou um atingido, da lama no mar que atrapalha a pesca, o surf. Para cada impacto, uma resposta. Mas esses diferentes impactos atuam no sujeito, na pessoa. Não existe pessoa direta ou indireta. O impacto é múltiplo, mas o sujeito é o que nos interessa. E o sujeito é o atingido”, conclui.
Não foi acidente
Para atingidos, tratá-los como “impactados” é uma forma de minorar o que aconteceu. “Eles [as empresas] não aceitam como crime. Querem que a gente acredite que é um acidente, mas não é. É crime”, comenta Odete Cassiano, aposentada, moradora de Barra Longa. A lama da barragem chegou a seu quintal, subiu sete metros no primeiro andar da casa, arrastou o pomar, objetos que estavam no porão e a horta.
Agora, o principal efeito se dá na saúde dos pais idosos. “Eles sofrem muito com a poeira da lama, sempre vamos para a UPA, com tosse, alergia na pele, nos olhos. A lama ficou, está estacionada aqui perto, e a gente sofre”, conta.
Mineradoras não pagam ICMS
Em 1996, o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) aprovou a Lei Complementar 87/1996. Conhecida como Lei Kandir, a norma isentou empresas que exportam bens primários e industriais semielaborados de pagarem o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Recursos do imposto, que seriam repassados a estados e municípios, tornaram-se créditos concedidos a essas empresas.
Entre as principais beneficiárias da Lei Kandir, as mineradoras respondem por cerca de 4% do PIB brasileiro e 8% do PIB de Minas Gerais, que é o principal estado produtor mineral do país. Segundo dados do governo estadual, durante a vigência da lei, Minas Gerais deixou de arrecadar ao menos R$ 135 bilhões com ICMS, sendo que 25% desse valor (R$ 33,61 bilhões) poderiam ter ido para os municípios mineiros.
“Mineradoras só pagam a CFEM, que tem uma alíquota muito baixa sobre receita líquida [3% para alumínio, manganês, sal-gema e potássio e 2% para ferro, fertilizante, carvão e outras substâncias]. Ora, na receita líquida, as mineradoras usam preços de transferência. Então, imposto de renda e outros valores não chegam”, comenta a economista Eulália Alvarenga, integrante da Justiça Fiscal na América Latina e Caribe.
Edição: Frederico Santana