No ataque à singularidade da saúde mental, está uma das derrotas mais radicais
Há muitas faces na trajetória do golpe em andamento contra a sociedade brasileira. Se o primeiro lance, com o impeachment de Dilma Rousseff, significou a cassação da vontade popular e a institucionalização de um governo ilegítimo, logo as múltiplas inspirações foram deixando ver seus dentes sangrentos.
Uma história de infâmia feita da retirada de direitos civis e trabalhistas, da instauração de um Estado policial e da entrega das riquezas estratégicas. Segue com o avanço sobre a seguridade, o congelamento dos gastos com saúde e educação, o desmonte das políticas sociais e o ataque à universidade pública. São etapas de um processo que anuncia seus próximos lances de rapina.
No entanto, há algumas atitudes que vêm sendo tomadas à sombra do golpe que mostram a força destrutiva de um projeto regressivo contra conquistas de civilização, muito além da política e da economia. Como o patrocínio velado a projetos educacionais alienantes e o reforço de uma cultura de exclusão, censura raivosa e preconceito. Chega agora a vez da saúde mental.
A história da luta antimanicomial é um dos capítulos mais belos das políticas públicas de saúde no Brasil. Fruto da indignação que brotou pela forma desumana como eram tratadas as pessoas portadoras de sofrimento mental, o movimento foi ampliando sua atuação tocado por uma motivação ética. O sentimento humano que nos incita a fazer o bem frente ao entendimento que o outro é nossa continuidade necessária.
Choques, torturas, despersonalização, isolamento social faziam parte de uma estrutura de conhecimento e organização social que não entendia a complexidade do sujeito e tinha um olhar higienista sobre a relação entre as pessoas. Foi preciso mudar as mentes para depois chegar ao coração. Fruto do trabalho de muitas gerações, a luta antimanicomial foi um momento pouco comum, em que a generosidade humana resultou numa prática institucional. Uma espécie de materialização do bem.
O resultado desse processo foi a ampliação do conhecimento em bases humanísticas – um reconhecimento humilde e audaz dos espaços infinitos que habitam o interior das pessoas – e a maturidade em traduzir o conhecimento em práticas emancipadoras. A política de saúde mental que brotou dessa história levou ao questionamento dos manicômios, à mudança das práticas assistenciais e à integração entre pacientes e sociedade.
Tudo isso pode se perder.
Na linha de destruir os direitos humanos encampada pelo governo, a mudança anunciada na política de saúde mental propõe trazer de volta o financiamento de leitos psiquiátricos, a destruição de formas mais humanas de atenção e a perspectiva egoísta da segregação social. Esse é o lado visível.
Por trás, de forma velada, se entrevê um retrocesso na solidariedade social e na compreensão do adoecimento psíquico. Como uma derivação do mercado, a saúde mental se torna um produto e o paciente um pária que apenas incomoda e precisa ser tirado de cena para não dar trabalho às famílias e à sociedade. Se der um lucro à indústria dos medicamentos e dos capitalistas da saúde, tanto melhor.
Sem falar da roupagem muitas vezes falsamente caridosa de alternativas que lançam mão da religião para calar o Deus de verdade que habita em todos nós, sobretudo quando sofremos.
O caminho para a exclusão está reaberto.
O golpe tem deixado marcas duras na sociedade brasileira. Talvez, na singularidade da saúde mental, essa seja uma das mais radicais derrotas desse momento. Junto com a mudança da política para o setor estamos perdendo um pouco da humanidade, um tanto do esforço intelectual de pensadores generosos, uma porção importante da força moral que levou à institucionalização capaz de frear a ambição do mercado em nomes de valores universais.
O Ministério da Saúde tem se mostrado ponta de lança do que de pior o governo não eleito pode nos fazer. Retirou assistência aos mais pobres com o ataque sistemático ao Mais Médicos, acabou com a farmácia popular, anuncia plano de saúde pobre para pobre, corrói as bases do SUS e a universalidade da atenção integral. Agora chega ao seu ápice: quer ferir de morte a subjetividade e nos tornar pessoas piores para poder viver no mundo sem alma que estão criando.
A única atitude saudável é a revolta.
Edição: Joana Tavares