Faz 30 anos que o Brasil perdeu Henrique de Souza Filho, o Henfil. O humorista nasceu em fevereiro de 1944, em Ribeirão das Neves, Região Metropolitana de Belo Horizonte, e faleceu em janeiro de 1988, no Rio de Janeiro, vítima do HIV contraído em uma das transfusões de sangue que precisava fazer, por ser hemofílico. Seus irmãos, o sociólogo Hebert de Souza (Betinho) e o músico Chico Mário, comungaram o mesmo destino.
Quem acompanhou de perto sua trajetória conta como essas três inteligências velozmente se expandiam, desde a infância, impulsionadas pela urgência de viver e gerar vida, como quem sente seu tempo (e seu sangue) escorrer sem cessar. Henfil, em particular, cedo escolheu fazer desenhos, mas depois confessou predileção pelos filmes, pois “o cinema não coagula”.
Quem pode negar que havia movimento no que desenhava? E ele muito desenhou nos curtos 25 anos de uma carreira misturada com a resistência à censura, à tortura, à ditadura. Começou no ano do golpe militar e não teve tempo de ver o desfecho da Constituinte e as eleições de 89, embora fosse o criador da palavra de ordem “Diretas já”, que agitou o país em 1984.
Escreveu diversos livros, entre os quais “Hiroshima, meu humor” (1966), “Henfil na China” (1980) e “Como se faz humor político” (1984). Trabalhou nos jornais Diário de Minas e Jornal de Sports e nas revistas Alterosas, Realidade, Visão, Placar e O Cruzeiro, entre outros veículos. O que mais marcou sua trajetória foi O Pasquim, semanário produzido entre 1969 e 1991, que chegou a circular com 200 mil exemplares e infernizou os militares com muito deboche.
Ligeiro e destemido para enfrentar o golpe
"A gente sentava para produzir coletivamente, mas o Henfil tinha uma velocidade e uma profusão na criação que a gente não chegava aos pés. A gente ficava pensando ideias e ele já tinha desenhado uma dúzia de cartuns.
A cabeça dele era uma usina muito ativa", conta a chargista Laerte Coutinho, em entrevista ao Brasil de Fato.
O mineiro deixou numerosos personagens, como a Graúna, os fradinhos Baixinho e Cumprido, o Urubu, mascote do Flamengo, o Bacalhau, mascote do Vasco, e o cangaceiro Zeferino. Tudo feito com traço simples, mas inconfundível; ágil, mas zelosamente trabalhado para servir a uma estratégia de comunicação política. "O verdadeiro humor dá um soco no fígado de quem oprime", definia assim sua vocação.
O cartunista Nilson Azevedo, companheiro de Henfil nos traços políticos e irônicos, recorda a influência que ele teve nas lutas daquele período. “No Diário de Minas, fazia uma charge de esporte e cinco de política todo dia. E conseguiu fazer com que a população ficasse do lado dos estudantes. Teve passeata na Avenida Amazonas em que as pessoas nos prédios jogavam sacos de leite na repressão. Ele também conseguiu, no futebol, colocar conceitos da luta de classes. Os personagens de Vasco, Flamengo e Fluminense representavam as classes. O que interessava era estar do lado dos oprimidos, de forma clara”, lembra.
Tudo isso rendeu muita perseguição, reprimenda a trabalhos seus, tentativas de prisão e até ameaças de morte. Além das ligações anônimas, seu nome chegou a figurar em uma lista de 500 pessoas que deveriam ser assassinadas. “Como ele era hemofílico, a primeira porrada que levasse ia ser um problema. Mas o Henfil tinha uma coragem impressionante. Mesmo depois dessas ameaças, ele nem fechava a porta da casa”, conta Nilson.
Filmes sobre Henfil
- “Henfil”, de Angela Zoé. Longa-metragem acompanha um grupo de animadores que descobrem o legado do humorista em uma oficina de animação. Veja o trailer.
- “Três irmãos de sangue”, de Ângela Patrícia Reiniger. No dia em que Betinho morreu, em 1997, Marcos Souza, filho de Chico Mário, teve a ideia de contar a história do pai e dos dois tios em um filme. Veja aqui.
- “Henfil Plural”, de Laine Milan e Vicente Guerra. Programa exibido pela TV Cultura em 2009 traça o perfil do humorista mineiro, com a ajuda de amigos, familiares e conhecedores da obra. Disponível aqui.
- “Cartas da mãe”, de Fernando Kinas e Marina Willer. Entre 1970 e 1985, em jornais e revistas de grande circulação, Henfil trocou cartas com sua mãe, Dona Maria. Esse foi um recurso bem humorado para criticar a ditadura driblando a censura. Anos depois, a experiência originou um livro e o média-metragem “Cartas da Mãe”, narrado pelo ator Antônio Abujamra. Disponível aqui.
Músicas que falam dele
“Ressurreição”. Em 1987, Chico Mário compôs a música para Henfil, que sobreviveu a uma delicada cirurgia. “Na mesa de operação, ele falou: ‘eu não volto’. Eu cheguei em casa e fiz a música para ele”, recordou Chico. O músico morreu oito meses após o irmão, em 1988, com a mesma enfermidade. Em 2005, o regente Wagner Tiso criou uma releitura da composição. “Procurei fazer um sentido de movimento, de correnteza, que relembrasse tanto o mar, como o vento, os rios e o sangue”. Ouça.
“O bêbado e a equilibrista”. A partir de 1979, o sociólogo Hebert de Souza, o Betinho, ficou conhecido no Brasil como “o irmão do Henfil”, expressão por meio da qual é citado na canção de João Bosco e Aldir Blanc. É que, desde que Betinho teve que ir embora do país, fugindo da repressão militar, seu irmão falava dele para todos os amigos com ternura e nostalgia. A canção virou símbolo da redemocratização do país. “E sonha com a volta do irmão do Henfil, com tanta gente que partiu...”. Ouça.
Alguns personagens
Graúna, Capitão Zeferino e o Bode Francisco Orelana. O pássaro preto e analfabeto, feito em forma de exclamação; o cangaceiro valentão, machista e pinguço; o bode sabichão que usava um chapéu-coco. Esse trio do sertão foi criado para criticar a desigualdade social, a violência e a corrupção na ditadura militar.
Os Fradins. Baixinho era atrevido, indecente e não suportava hipocrisia. Cumprido era carola, medroso e romântico. Suas aventuras eram uma crítica à educação religiosa inflexível que marcou a infância de Henfil.
Cabôco Mamado. Entidade que sugava o cérebro das pessoas que colaboravam com a ditadura. Ele vivia no Cemitério dos Mortos-Vivos, lugar para onde, em suas tirinhas, Henfil enviou aquelas personalidades que, segundo ele, estavam vivas, mas era como se não estivessem, por suas atitudes. Para lá foram Elis Regina, Tarcísio Meira, Pelé, Roberto Carlos e Clarice Lispector, entre outros.
Edição: Joana Tavares