No dia da morte de Hawking, São Paulo exibia espetáculo de desrespeito ao saber
A morte recente do físico britânico Stephen Hawking despertou no mundo uma onda de gratidão, reconhecimento e admiração. Gênio que revolucionou nossa concepção de universo, ele ganhou ainda notoriedade pela coragem e tenacidade com que enfrentou a doença que o prendeu à cadeira de rodas e quase o isolou do mundo. Exemplo de cientista entre seus pares, se tornou modelo de pessoa para toda a humanidade.
Ainda que suas ideias científicas sejam complexas e exijam conhecimento profundo de matemática e física teórica, Hawking sempre esteve próximo das pessoas comuns por duas inclinações humanas pouco comuns: a ambição filosófica e a generosidade intelectual. Ele queria nada menos que compreender os maiores mistérios do universo; e queria que suas ideias fossem partilhadas por todos.
Por isso suas principais perguntas foram sempre as mesmas de todas a pessoas que um dia olharam para o céu e para o coração do homem. Do espaço, queria saber a origem das coisas, a história do tempo, a presença da vida no espaço. De onde viemos, quem somos e para onde vamos. Do coração, importava a ele o valor da vida humana, a correção dos rumos tomados pela ciência, a busca de sentido na existência.
Mas se o interesse nas maiores questões da ciência e a da vida o levavam à pesquisa profunda, como os grandes sábios de outros tempos, sua intenção em dividir o conhecimento com todas as pessoas o animou a escrever livros compreensíveis e ocupar o espaço público com sua voz computadorizada. Para quem tinha tanta dificuldade de comunicação, é no mínimo tocante que ele tenha procurado, além das palavras destinadas a quem amava, se esforçar para distribuir lições de sabedoria. Amor ao saber. Saber amar.
Livros como Uma breve história do tempo e O universo na casca de noz foram fruto de um duplo esforço de amor ao conhecimento e à humanidade. Cobraram pesquisa, especulação, criatividade e teoria. Engenho, arte, dedicação. Ao lado da pesquisa pura e dos artigos científicos destinados aos seus pares, Hawking preservou sempre o compromisso com a divulgação do conhecimento para as pessoas comuns.
Mas que ninguém ache que suas ideias foram simples. É exatamente por que foram difíceis que o empenho se torna ainda mais significativo. O cientista não foi um populista do saber, mas um iluminista da educação. Seu projeto de entender o universo só tinha sentido se fosse dividido. A crença na igualdade humana foi o fundamento da sua ideia de liberdade intelectual.
A doença de Stephen Hawking, a esclerose lateral amiotrófica, também conhecida como ELA, tornou o cientista ainda mais conhecido. Em mais de 50 anos de convivência com as limitações físicas, que foram se agravando com o tempo, ele demonstrou uma alegria de viver que contagiava a todos. Em um escrito autobiográfico, Minha breve história, Stephen conclui que viveu de forma completa e prazerosa. Contabiliza as amizades que fez, os amores que partilhou, os lugares que conheceu, os trabalhos que realizou. Não reclama, comemora.
E, além disso, tudo que foi obstáculo para ele se tornou um ganho para muitos. À medida em que a doença avançava, Stephen Hawking se dedicava a suprir as dificuldades com o uso da tecnologia. Fez de sua sagacidade científica o caminho para superar obstáculos, tanto na mobilidade quanto na comunicação. Essas contribuições fazem hoje parte de um repertório de possibilidades para todos os portadores de limitações físicas. A dedicação – e o alerta – para o campo da inteligência artificial nas reflexões mais recentes do físico, talvez tenha vindo de sua peculiar condição.
Sangue na Câmara
No mesmo dia em que o mundo perdia Stephen Hawking, a cidade de São Paulo exibia um triste espetáculo de desrespeito ao saber. Incapaz de diálogo democrático, a prefeitura e a Câmara de Vereadores impediam professores de acompanhar a votação de projeto de interesse da categoria. Professores foram agredidos, tratados a bombas e cassetetes, feridos. A imagem de uma professora sangrando no rosto é tristemente exemplar.
O prefeito João Dória (PSDB-SP) e sua polícia não tiveram a humildade de confessar o erro nem o brio de promover a investigação dos responsáveis. No que não estão isolados na sanha autoritária que se fortalece no país. São Paulo tem escrito uma história lamentável de criminalização dos protestos e manifestações populares, sobretudo na área da educação.
O pau comeu quando o governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP) quis fechar escolas. O couro cantou quando os estudantes ocuparam escolas para defender o direito à educação. Nos dois casos, com a gestão da polícia pelo atual ministro do STF, Alexandre Moraes. Coerentemente, pouco tempo depois, o então ministro da Justiça de Temer defendeu mais armas em lugar de mais inteligência. Não foi uma opção técnica, mas uma postulação de princípios.
O governo federal tem também promovido sua escalada antieducação. Acabou com o Ciência sem Fronteiras, contingenciou os recursos para pesquisas, acompanhou com leniência a invasão de universidades federais, deu azo à prisão ilegal e humilhação de reitores e professores, com o saldo do suicídio do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, ainda não investigado com seriedade.
A escalada da burrice no setor educacional segue com a reforma do ensino médio feita sem discussão com a sociedade, com a redução dos recursos para o Fies, com a nomeação de reitores e dirigentes de institutos de pesquisa que não foram escolhidos pela maioria de suas comunidades.
O apoio indiscutível à barbárie da escola sem partido e avessa ao tema da sexualidade e de gêneros se soma ao questionamento às cotas raciais e sociais. Além disso, juntamente com setores da imprensa comercial, tem trazido à tona debates sobre a cobrança de mensalidades em universidades públicas e acerca da limitação da autonomia universitária. Inclusive ameaçando com censura e processos os responsáveis por cursos sobre o golpe de 2016.
Um país que despreza a inteligência, desestimula o conhecimento, retira recursos da educação, não valoriza professores, encerra programas de formação de cientistas, persegue estudantes, joga bombas contra manifestantes e entrega sua soberania científica aos interesses comerciais, dificilmente será berço de um Stephen Hawking. Mas não é o mais importante. Gênios são poucos e frutos de um acaso inexplicável.
O que não podemos aceitar é o destino de buraco negro, que consome muita energia e emite pouca vitalidade, tragada pela força reativa da desigualdade diligentemente construída. Gente é para brilhar. Talvez a lição de Hawking mais adequada para o momento seja a que localiza a origem da vida como resultado de uma grande explosão. Está na hora do big bang.
Edição: Joana Tavares