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Supremo em tempos estranhos

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"Além de se comunicar por meio da emissora, o que é um rompimento do pacto republicano, Cármen Lúcia defende a pauta do veículo"
"Além de se comunicar por meio da emissora, o que é um rompimento do pacto republicano, Cármen Lúcia defende a pauta do veículo" - Tânia Rêgo/Agência Brasil
Refém dos interesses de uma classe, agora a corte se submete à Globo

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello disse que vivemos “tempos estranhos, em que um juiz de primeiro grau faz apelo a ministros do STF”. Ele reagia ao juiz Sergio Moro, que citou em sentença nomes de ministros do Supremo, o próprio Mello incluído, recomendando a manutenção da execução da pena de prisão depois da condenação em segunda instância. Marco Aurélio é considerado o mais independente da corte. Mas não pode ser considerado igualmente o mais atento. Demorou muito para diagnosticar a estranheza dos tempos correntes.

O Supremo brasileiro há muito perdeu o rumo. Chancelou o golpe, trocando a justiça substantiva pela conveniência procedimental. Se deixou cooptar pela sanha judicializadora que tomou conta do país, escanteando a democracia real. Trocou a saudável discrição que sempre foi característica dos magistrados pela ambição vaidosa. Serviu de caução a excessos de juízes açodados e ideológicos. Deixou de lado a imparcialidade discriminando réus de acordo com sua filiação partidária. Seria muito, se fosse tudo. Mas nas últimas semanas o STF extrapolou.

Depois de se tornar refém de interesses de classe, a corte agora entrega o que restava de respeitabilidade pela submissão a uma empresa. Repare bem: não se trata de uma escolha pelo mercado em si, mas por uma única representante de um segmento específico do mercado, no caso a comunicação. A postura genunflexória à Rede Globo, por parte da presidente Cármen Lúcia, é a etapa final do apequenamento da corte, para usar uma expressão ao gosto da ministra.

Além de se comunicar com a sociedade prioritariamente por meio da emissora, o que é um rompimento do pacto republicano, Cármen Lúcia defende a pauta do veículo pelo qual torna pública suas posturas. Ela manifesta os interesses da Globo, por meio da Globo, de acordo com o cronograma da Globo. Curiosamente, suas manifestações parecem afirmar a resistência a pressões e até mesmo a apelos racionais de seus pares. Mais que isso: foi capaz até mesmo de subverter a ordem jurídica natural do STF, de julgar em primeiro lugar os pedidos de habeas corpus – em razão de sua urgência – para se aferrar a princípios de ordem meramente regimental.

A decisão sobre a prisão depois do julgamento em segunda instância, por mais que Moro e o Ministério Público forcem a barra, é uma questão constitucional, que só cabe ao STF decidir. É aí que entra a responsabilidade – ou falta – da presidente Cármen Lúcia. Há um argumento aparentemente forte, da jurisprudência firmada há poucos meses, que deveria ser preservada para evitar casuísmo. Entenda-se por casuísmo, no entendimento da presidente, o caso Lula. No entanto, a manutenção dessa medida está prejudicada por ações relatadas exatamente por Marco Aurélio Mello, que não estão vinculadas a Lula, cujo mérito não foi apreciado pelo tribunal. Em outras palavras, a jurisprudência firmada está cambeta sem que todas as ações referentes a ela sejam apreciadas.

Se o STF tem como elementos máximos a Constituição Federal e as jurisprudências, parece claro que há uma precedência constitucional e, com isso, a prisão deveria esperar o trânsito em julgado em todas as instâncias, como reza a Carta. Como há conflito, a saída poderia ser uma emenda constitucional, o que a intervenção federal no Rio de Janeiro chuta para a lateral. Há também, como salientam os especialistas em ações no Supremo, uma tendência contraditória entre as duas turmas do STF no julgamento de habeas corpus, criando uma loteria jurídica inaceitável. Se o pedido vai para a primeira turma, o resultado é um; indo para segunda, a decisão é outra. De suprema, só há a inconstância.

Por todos esses argumentos, Cármen Lúcia teria como obrigação dirimir conflitos, e não criá-los, como tem feito. No jogo de divisão que varre a sociedade brasileira, a presidente convoca a cizânia para a suprema corte. Em sua birra infantil em travar a pauta, privilegiar canais privados de expressão e desviar-se de reuniões com colegas com argumentos fúteis, ela confunde autoridade com autoritarismo. Por temor de rejeição, assume a ira dos fracos, como canta Chico na canção Caravanas: “Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”. O mais grave, no entanto, é que a ministra coloca o STF em posição de disputa intestina por uma convicção que não é jurídica, técnica ou sequer pessoal.

O arco de legitimação do golpe começou com o Supremo e tem tudo para se completar na barra do mesmo tribunal. Há muitas formas de se entrar para a história. Cármen Lúcia fez sua escolha.

Edição: Joana Tavares