No Brasil, o setor é um dos menos livres do mundo porque é monopolizado
A divulgação do Ranking Mundial de Liberdade de Imprensa, publicado pela organização internacional Repórteres sem Fronteiras, confirma o Brasil na zona de rebaixamento. Amargando mais uma vez a 102ª posição entre 180 países, o país confirma a falta de sintonia existente entre o nível econômico, cultural e político do país e sua afirmação no campo da liberdade de imprensa.
Qualquer comparação que se faça desse índice com outros indicadores evidencia uma desconfiança de que, no Brasil, civilização e imprensa não caminham na mesma estrada. O país está léguas à frente de sua comunicação. O mais curioso – e que não deixa de ser uma comprovação da indigência da nossa imprensa – é que as explicações dadas pelos próprios jornais sobre o papelão brasileiro no setor, no mínimo omitem o significado dessa derrota moral.
As notícias publicadas mentem de forma descarada. Todos os jornais fizeram questão de afirmar que a posição brasileira se deve aos assassinatos de jornalistas no país, que fica atrás apenas do México. Pelas reportagens, o ranking é traduzido como uma listagem quantitativa de profissionais mortos em trabalho. A liberdade de imprensa, dessa forma, seria traduzida como garantia de vida de seus jornalistas. Um trabalho de polícia, não uma evidência política.
A realidade é outra. A imprensa brasileira é uma das menos livres do mundo porque é monopolizada, pouco plural e sem independência. São esses – e também a segurança dos profissionais – os aspectos analisados na metodologia da pesquisa. Publicado desde 2002, o ranking dos Repórteres sem Fronteiras se tornou uma referência internacional, utilizada pela Organização das Nações Unidas e Banco Mundial, entre outras entidades respeitadas.
Como registra a página do Repórteres sem Fronteira: “A finalidade do ranking é avaliar a situação da liberdade de imprensa nos 180 países listados. Se trata de uma fotografia da situação atual da liberdade de imprensa baseada na apreciação do pluralismo, da independência dos meios de comunicação, do quadro legislativo e da segurança dos jornalistas”. A esses itens se incorporam “o ambiente midiático e a autocensura”, ameaças constantes aos jornalistas submetidos a relações com empresas que fazem da comunicação uma agenda política. Como se vê, a imprensa brasileira vai mal das pernas em todos os quesitos.
No entanto, essa percepção pode parecer controversa para os brasileiros. Afinal de contas, no contexto altamente monopolizado e concentrador da mídia nacional, além da legislação frouxa em controles, parece que vivemos um cenário de ampla liberdade e de um setor industrialmente moderno. Essa sensação é vitaminada pelos próprios veículos de comunicação, que criaram a falsa atmosfera de uma imprensa contemporânea, democrática e liberal, quando na realidade é arcaica, autoritária e monopolista. Daí o dissenso, quase esquizofrenia, entre o país e sua imprensa.
Temos uma das piores imprensas do mundo e sequer sabemos disso. De tal forma o partidarismo, a autocensura, a bajulação e o pensamento único se infiltraram no cotidiano do brasileiro que parece ser esse o ecossistema natural da informação livre. A forma como a imprensa reagiu à decisão da turma do STF em enviar parte das delações do processo do ex-presidente Lula para São Paulo, destronando o juiz do universo, é um sinal da falta de compromisso com os fatos. A decisão do tribunal foi atacada raivosamente não apenas pelos comentaristas, mas nas próprias reportagens, num surto de editorialização poucas vezes visto.
A notícia merecia no primeiro momento a correção técnica de sua transmissão e depois análise de contexto, dando ao cidadão a função de julgar por si mesmo. A decisão foi apresentada como uma afronta contra a imprensa, que tem sido fiadora da Lava Jato, o que gerou um comportamento reativo quase histérico. É disso que se trata quando se fala em liberdade de imprensa e por isso o Brasil cai pelas tabelas internacionais. Por aqui, as fake news não são o desvio, são a regra.
Essa decisão, e é importante que o brasileiro entenda em profundidade, pode alterar a situação jurídica do ex-presidente, levando até mesmo à nulidade de sua sentença de prisão, além de mudar a jurisdição de seu processo para outro juiz natural. Não é apenas uma reversão no caso jurídico mais importante do país nesse momento, mas de uma situação que tem o poder de alterar a conjuntura política da nação. Mais que uma reviravolta processual, pode causar um abalo na institucionalidade brasileira. E o cidadão está sendo informado com ódio, não com fatos.
Estatal
O poço do arbítrio não tem fundo quando se trata de suprimir liberdades. Num processo de “realinhamento de estratégia”, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), enterrou de vez o projeto de uma comunicação pública no país. Temer já havia dado a senha de seu intento em destruir a empresa nos primeiros passos de sua intervenção, afastando o presidente legítimo e extinguindo o Conselho Curador.
Agora ataca o coração. A medida retira da missão da empresa o compromisso com a comunicação pública, que ganha agora a meta de fazer comunicação estatal. A EBC passa a funcionar de forma compósita com a NBR, responsável pela divulgação das ações do governo federal, perdendo sua independência e laços com o direito à informação como bem de cidadania.
A medida significa uma certificação da estratégia chapa-branca, sem constrangimento sequer legal, uma vez que descumpre a própria Constituição Federal, que prevê a comunicação pública e seu caráter complementar com os segmentos privado e estatal. O golpe de morte à dimensão pública foi dado. Antes de ser regulamentados (depois de quase 30 anos!), o artigo 223 da CF se torna definitivamente letra morta.
O realinhamento - ou para ser mais exato, a capitulação - cumpre ao mesmo tempo os propósitos de culto ao poder e de defesa do mercado da informação e da cultura para as emissoras privadas, que ficam para sempre libertas de qualquer possibilidade de contraponto.
Não precisamos esperar o ano que vem. Já podemos antecipar a humilhação. Uma das piores imprensas do mundo acaba de ficar ainda pior.
Edição: Joana Tavares