Minas Gerais

Análise

Artigo | A Trumplândia e a desordem do mundo

"Não apenas nos EUA, mas em diversas regiões do globo ocorrem manifestações que desafiam a fraca democracia liberal"

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
A crise de hegemonia favorece a ascensão de discursos de extrema direita, que se transfiguram enquanto “o novo”, mas são conservadores
A crise de hegemonia favorece a ascensão de discursos de extrema direita, que se transfiguram enquanto “o novo”, mas são conservadores - Boris Baldinger

Estamos num momento de transição: segundo Robert Cox, ao passo que “um bloco histórico está se dissolvendo, outro ainda não tomou o seu lugar”. A crise orgânica que tomou conta do mundo advém, em grande medida, da mundialização do capital e das fraturas representativas e materiais impostas por este modelo de desenvolvimento desigual. Segundo Stephen Gill, a crise se dá em três níveis: 1) o ‘econômico’, que inclui a reestruturação da produção, das finanças e do comércio global; 2) o ‘político’, com mudanças institucionais e as tentativas de reforma do Estado e 3) o ‘sociocultural’, entendido como um conjunto inter-relacionados de estruturas, ideias e práticas sociais que colocam em rota de colisão as forças que trabalham a favor e contra qualquer tipo de mudança estrutural.

Dada a complexidade da crise, este momento se traduz na necessidade da esquerda em refletir sobre sua estratégia de ação, pois seus desdobramentos podem resultar em duros retrocessos na luta por direitos sociais e na manutenção daqueles já conquistados.

A ascensão de Trump ao poder da maior potência mundial é reflexo desta tríplice crise. ​Não apenas nos EUA, mas em diversas regiões do globo ocorrem manifestações que desafiam a fraca democracia liberal. Na América Latina o conservadorismo retorna ao poder, seja através de eleições (Argentina), ou por meio de um novo tipo de golpismo (Brasil, Paraguai) e tentativas de desestabilização política (Venezuela, Equador). A coesão do bloco da União Europeia – modelo exemplo do institucionalismo funcionalista – é fragilizada com a saída do Reino Unido, além do espectro da extrema direita em ascensão em todo o continente europeu.

Isso posto, entendemos que a eleição de Trump e as suas políticas não podem ser ingenuamente encaradas como ignorância, mas sim enquanto um resultado de escolha pela mudança do status quo por parte de seu eleitorado, uma tendência mundial.

E como explicar este movimento? A resposta certamente não é simples e unicausal. De todo modo, um das causas é o esgotamento de parte da liderança desempenhada pelas elites (trans)nacionalmente, padrão que ganhou força com a crise financeira de 2008. Neste sentido, a lógica da acumulação capitalista apoiada majoritariamente nas políticas de austeridade interrompe a própria reprodução social necessária para o consenso, dificultando, dessa maneira, a sustentação da hegemonia, além de tornar a crise mais aguda.

Este ciclo parece estar na raiz do trumpismo. Com uma base de votos amplamente proveniente da classe média “qualificada”, pequenos proprietários e os WASP (acrônimo que em inglês significa “branco, anglo-saxão e protestante”), Trump foi eleito por representar um tipo de mudança. Diferentemente do establishment representado por sua rival Hillary Clinton, a qual nem mesmo os tradicionais sindicatos pró-democratas estagnados no transformismo do sistema político foi capaz de apoiar com vigor. O trumpismo parece ter articulado alguns anseios presentes na sociedade estadunidense, tais como o desinteresse pela política com fortes críticas ao status quo e seus candidatos, criando assim um movimento eleitoral ancorado na ideia do anti-establishment e do outsider. Para isso, o discurso populista do atual presidente dos EUA está voltado para coisas como o protecionismo e o nacionalismo, respostas clássicas em momentos de crise orgânica.

Em relação ao protecionismo, articulado em torno do conceito de fair trade, Trump nada na raia dos “perdedores da globalização”, grupo composto em sua maioria pela classe média. Esse parece ser o significado da saída quase que imediata dos Estados Unidos do TPP, bem como a revisão do KORUS e do NAFTA. A estratégia já atingiu o Brasil com a política recém implementada por Trump de sobretaxar as importações de aço. Em relação ao segundo ponto, temos o tradicional uso do medo e da desumanização do “outro” como ferramenta de comoção dos sentidos em prol da defesa de interesses políticos.

O discurso de Trump ameaça o imigrante (sobretudo latino/árabe) e o muçulmano. Como desdobramento disso, temos na política externa estadunidense a agressividade do lema “Make America Great Again”. O slogan, além de dar sustentação ao conceito de fair trade e à xenofobia, busca legitimar um tipo de engajamento internacional imperialista, algo que aparentemente havia sido comprometido. A fala do ex-secretário de Estado estadunidense, Rex Tillerson, na Universidade do Texas um pouco antes de sua passagem pela América Latina foi ilustrativa: “A América Latina não precisa de novas forças imperiais que estão buscando apenas lucrar”.

Sabemos que a crise de hegemonia favorece a ascensão de discursos de extrema direita, que se transfiguram enquanto “o novo”, reificando os velhos valores conservadores atrativos ao capital por meio de princípios como o nacionalismo e a xenofobia. Assim se apresenta o governo de Donald Trump.

Além disso, este momento também pode ser um período importante para a esquerda em sua estratégia de ocupar espaços dentro da guerra de posição, demonstrando com isso as contradições do projeto hegemônico de determinado bloco histórico. Porém, no nosso momento histórico, a esquerda aparentemente se apresenta ausente enquanto força social organizada capaz de barrar este populismo de direita, como a experiência internacional parece demonstrar. A correlação de forças atual ocorre por diversos motivos, desde a fragmentação da classe trabalhadora, a rejeição por qualquer forma de disciplina, estratégia e organização política. A crise é global, de modo que nunca fez tanto sentido o apelo de Karl Marx e Friedrich Engels: “proletariado do mundo todo, uni-vos!”

*Filipe Mendonça é doutor em Ciência Política pela UNICAMP e professor de Relações Internacionais na UFU e Davi é mestre em Relação Internacionais pela UFU.

Edição: Joana Tavares