A antropóloga Iraida Vargas e o professor Mario Sanoja conversam com o Brasil de Fato sobre o cenário político da Venezuela após as eleições deste ano e analisam o bombardeio midiático e os principais desafios para o país no próximo período.
Brasil de Fato - Que avaliação se pode fazer do resultado das últimas eleições da Venezuela, onde Nicolás Maduro foi eleito com mais de seis milhões de votos?
Mario Sanoja: As eleições presidenciais do último dia 20 de maio mostraram que o núcleo duro do chavismo organizado no Grande Pólo Patriótico mostrou um sólido nível de consciência política e patriótica. O Partido Socialista Unido da Venezuela, com uma militância de 6,5 milhões de adeptos, revela-se como um dos maiores partidos políticos da Venezuela e da América Latina.
Iraida Vargas: A clareza do núcleo chavista que votou. Clareza ideológica, clareza na luta necessária, clareza de compromisso político, clareza no objetivo buscado, amor à pátria venezuelana. Não foi um voto "emocional", mas sim racional, no entanto, cheio de amor por Chávez.
Quais são os cenarios que se abrem após as eleições?
Mario Sanoja: Ainda é muito cedo para fazer uma avaliação da situação pós-eleitoral. No entanto, poderíamos dizer que a existência de um sujeito popular que passou a fazer parte da vanguarda da Revolução Bolivariana, muito consciente de seu papel histórico, após a profunda ruptura histórica que acaba de ocorrer na Venezuela com o passado representado pelo IV República. Da mesma forma, a radicalização da Revolução Bolivariana é proposta em resposta à guerra econômica dos governos dos Estados Unidos e da União Europeia. O diálogo político, como expressa o Presidente Maduro, é sempre necessário e produtivo, mas só quando é realizado entre pares que aceitam tanto os princípios fundamentais da soberania e independência da pátria venezuelana como seu sistema de governo. escolhidos em eleições livres e democráticas.
Iraida Vargas: O governo bolivariano assumiu a liderança nesse sentido. O discurso pós-resultado eleitoral do presidente Nicolás Maduro foi enfático na necessidade de alcançar um grande diálogo nacional que coloque para trabalhar em conjunto os diversos setores da sociedade para que se consiga sair da crise econômica e avançar no sentido da recuperação do país. No entanto, houve relutância no início da implementação deste diálogo, conforme refletido nas declarações do povo nas semanas seguintes à eleição presidencial.
Por estas razões, os cenários previsíveis são: a realização de reuniões com os diferentes setores da sociedade. Mas o governo bolivariano deve saber que os setores populares têm aspirações e desejos que não se satisfazem apenas com essas reuniões. Muitas pessoas consideram isso como uma traição e uma rendição. Assim, para que se consiga um consenso popular, é desejável que o governo se dedique à satisfação dessas aspirações e desejos populares que estão resumidos na seguinte lista:
1. Derrotar a guerra econômica castigando, ao mesmo tempo, os setores burgueses que são os arquitetos da guerra midiática e da própria guerra econômica. 2. Assumir a luta cultural na vida cotidiana com novos conteúdos. Para isso, o governo bolivariano deve parar de reduzir a cultura à arte e ao entretenimento.
3. Reconhecer e fazer reconhecer o verdadeiro inimigo da República Bolivariana, a nível interno e externo. A burocracia é um dos inimigos internos.
4. Tomar medidas para fortalecer a paz através da justiça; a paz não é apenas a tranquilidade, nem a violência é apenas a violência das ruas. Segue existindo formas "invisíveis" de violência.
5. Impulsionar o diálogo entre os próprios chavistas, votantes ou não.
6. Aplicar sanções aos chamados “vende pátria”. Promessa não cumprida com a libertação de vários deles pelo governo revolucionário sem que isso favorecesse o país e o povo sofrido que teve que suportar seus excessos e desmandos. 7. Por tudo isso, será necessário reconhecer os verdadeiros agentes e atores de cada uma dessas lutas revolucionárias e contra-revolucionárias.
Ante o bombardeio midiático que existe contra a Venezuela, muitas vezes torna-se difícil dimensionar e valorizar algumas vitórias importantes do chavismo, assim como a vitória do último dia 20 de maio. Qual é a sua importância para a luta dos povos na América Latina?
Iraida Vargas: Demonstra a persistência do chavismo duro dentro do povo, com uma forte consciência política. Isto surpreendeu o império e a oposição que acreditavam que o chavismo tinha sido derrotado pelas guerras implementadas. Embora se acredite que seja um slogan banal, a maioria dos povos do mundo - especialmente os latino-americanos - apóiam a luta do povo venezuelano. A surpresa do império e da oposição de direita deve-se ao fato de que eles acreditaram em suas próprias mentiras midiáticas. Por tudo isso e apesar da guerra midiática, as noticias reais encontram seu caminho para os povos do mundo.
A Venezuela está hoje no cenário de uma batalha global decisiva, e conta com o apoio da China e da Rússia, que legitimam o processo eleitoral do país, ao contrário dos Estados Unidos. Quais são as armas da Venezuela para enfrentar esta batalha?
Mario Sanoja: A principal arma da Venezuela é o alto nível de organização popular que, juntamente com a sólida consciência patriótica das Forças Armadas Nacionais Bolivarianas e da Milícia Popular Bolivariana, formam um bloco cívico militar que se tornaria, se necessário, um exército organizado para a guerra a longo prazo. Além disso, a Venezuela conta com a solidariedade de potencias como China, Rússia, Irã, Bielorrússia, Caricom e Bolívia, Índia e o bloco de 159 países não alinhados. Este fato favorece e consolida a posição da Venezuela na nova ordem social e econômica que já está emergindo na realidade geopolítica mundial.
Iraida Vargas: Existem armas muito importantes que consistem em tratar de reviver e colocar em prática várias das propostas de Chávez como por exemplo gerar aliados internos e externos sem se esquecer dos princípios revolucionários. Dinamizar o diálogo, fazê-lo mais frequente e estreitar o trato com os países não-alinhados, como é o caso do muito leal Caribe insular (CARICOM), alguns países da Ásia (Turquia, Irã, Rússia, Bielorrusia), ativar as relações com os países africanos particularmente com África do Sul, estimular mais contatos com os povos latino-americanos (e não com os governos fascistóides) e mostrar informações sobre eles que mostrem algo mais do que apenas o folclore.
O papel da transformação cultural é vital: mudar o modo de vida, esquecendo aquele que foi cunhado nos últimos 200 anos de história baseado no "American Way of Life". Intercambiar programas culturais com a Turquia, o Irã, a Bielorrússia, a Rússia, a China, a Palestina e todos aqueles interessados em conhecer a realidade “real” venezuelana.
Quais são as vantagens do chavismo em relação a outros governos na América Latina?
Iraida Vargas: A grande vantagem é a organização popular impulsionada por Chávez, já que o povo internalizou a máxima chavista de que "somente o povo salva o povo" e luta para conseguir um poder suficiente para construir um Estado Comunal. Embora uma parte importante dessa organização popular existisse antes mesmo de Chávez, ele a sistematizou e impulsionou, dando-lhe um pleno conteúdo ideológico, embora ainda de forma relativamente pouco profunda. Outro fator a considerar é o PSUV, um partido que gerou um mecanismo eleitoral particularmente eficiente.
A última vitória eleitoral nos mostrou que o chavismo segue forte e com capacidade de mobilização. Ante esse fato, que elementos presentes na sociedade e na cosmovisão do povo venezuelano contribuem para a construção de uma consciência de classe para si?
Iraida Vargas: Na sociedade venezuelana está presente um glorioso passado de luta. No século XVI, no século XVII e, especialmente, a partir do século XVIII até Chávez, o povo lutou incansavelmente contra o invasor. Lutou, defendeu, ganhou e perdeu. Chávez inoculou no povo a consciência sobre o que é a Pátria, reconheceu a importância do amor, dos costumes culturais tradicionais, dos valores, das lutas realizadas e as formas de organização social que temos construído ao longo da história, mas agora devemos ir ajustando com a multiplicação das necessidades sociais. Chávez advertiu fortemente, com menção especial contra a ignorância, a subordinação anímica e mental, a preguiça e outros traços negativos incutidos pela burguesia e pela oligarquia, recordando continuamente a máxima do Libertador (Simón Bolívar):" ...eles tem nos dominado mais pela ignorância do que pela força... ". Chávez inculcou nos setores populares a noção de constituir uma classe social que deve buscar sua "máxima felicidade " e uma vida digna, não de luxo ou lucrativa, dedicada ao amor, ao trabalho criativo, distante das perversões capitalistas. Isso foi internalizado por importantes grupos dentro dos setores populares.
Uma das formas mais importantes do processo de dominação do imperialismo é a destruição cultural, no sentido de fazer com que as futuras gerações não tenham como se lembrar e se reconhecer culturalmente. Como a Venezuela está enfrentando essa dominação?
Iraida Vargas: A transformação cultural é o maior desafio para a Revolução Bolivariana, e isso constitui um desafio permanente para ela; já era um desafio para Chávez e permanece porque embora tenhamos avançado na construção de um sistema de valores e de uma ética socialista, o adversário nesta luta - as transnacionais da indústria cultural - são poderosos e exercem hegemonia a nível mundial na geração de significados culturais. Por estas razões o balanço não é muito animador e favorece as industrias na criação de hegemonia cultural. Deve ser entendido, sem equívoco algum, que a luta assim planejada e levantada vai além do quadro de participação eleitoral, é necessário inclui-la na luta cotidiana, socialmente determinada, contra um capitalismo que constrói formas culturais de subjetividade coletiva para poder funcionar e reproduzir-se apropriadamente. Para construir as mulheres e os homens novos, necessários na revolução, se requer o desenvolvimento das disposições subjetivas coerentes e apropriadas com as transformações que se busca. O processo revolucionário demanda que novas e tradicionais formas culturais sejam incorporadas no imaginário coletivo, de fato, sem elas não poderá existir a soberania cultural.
O chavismo está comprometido com a construção de uma sociedade comunal socialista como forma de superar o modelo capitalista de organização social. Em que se fundamenta essa proposta? Em que estágio se encontra a Venezuela hoje?
Mario Sanoja: Ter criado um estado revolucionário organizado com base em missões sociais que resolvem os problemas vitais do povo, nos campos da educação, da saúde, da habitação, da organização comunal do poder popular originário, bem como da criação de uma estrutura territorial baseada em regiões comunais populares - é a partir dessas regiões que as novas relações sociais de produção são antagônicas ao metabolismo capitalista.
Iraida Vargas: Em que se fundamenta essa proposta? A proposta chavista pressupõe que a República Bolivariana deve produzir um espaço social que represente as transformações históricas que o processo bolivariano introduziu no povo venezuelano, manifestando assim sua própria capacidade criativa popular. A organização comunal mostraria a capacidade do povo para atuar responsavelmente sobre o ambiente natural, sobre a vida cotidiana, sobre os códigos e as formas culturais e sociais, criando as condições políticas que permitam sustentar no tempo a integridade do novo espaço social revolucionário. O socialismo comunal se concretiza territorialmente através da construção dos conselhos comunais e das comunas, células que servem de base para o Poder Popular e se materializam em territórios concretos que pertencem aos sujeitos que o integram e com os quais esses sujeitos se identificam.
Em que estágio a Venezuela se encontra hoje? Foram construídas mais de mil comunas em todo o território nacional. No entanto, existem fortes obstáculos para o seu desenvolvimento contínuo, especialmente aqueles de caráter cultural. Portanto, no momento atual, nos encontramos no meio de uma luta cultural contra as forças contra-revolucionárias pois os problemas culturais que terão de ser enfrentados para chegar em algum momento na implementação do sistema comunal em toda a Venezuela são muito variados e complexos, particularmente no caso de comunas urbanas e peri-urbanas onde a luta de classes é mais intensa e adquire características particulares.
Em algumas de suas obras e publicações, sugeridas inclusive pelo próprio presidente Nicolás Maduro, é visível a importância dada para o território como fator potencial de expressão do poder popular. Qual a importância do poder popular para a superação do capitalismo?
Mario Sanoja: A criação de regiões comunais populares e o surgimento de novas regiões geo-históricas serão o caminho para combater a antiga estrutura territorial composta por estados e municípios estabelecida pelo Estado liberal burguês em 1840. As regiões comunais são a verdadeira expressão do poder popular.
Iraida Vargas: Nós pensamos que a resposta está nas propostas feitas pelo próprio presidente Chávez (as quais compartilhamos e lutamos por elas) que concebia o socialismo como um sistema econômico centrado no ser humano (e não na dominação dos povos para acumular capital), com uma cultura plural, solidária e anticonsumista, que sempre se manifestava territorialmente. Para Chávez, esse socialismo se fundamentava numa democracia direta, onde o povo era quem deveria ter o protagonismo, quem deveria possuir de fato o poder. Esse poder popular seria, então, o que permitiria a participação e o protagonismo das pessoas na tomada de decisão, de todos e todas e em todos os espaços, em todos os territórios, sem exclusões e com metas definidas para alcançar um desenvolvimento humano com dignidade.
Mario Sanoja é Professor aposentado da Universidade Central da Venezuela. Professor da Escola Venezuelana de Planejamento. Prêmio Nacional de Cultura.
Iraida Vargas é Antropóloga formada pela Universidade Central da Venezuela (1964) e Doutora em História da América, Universidad Complutense de Madrid (1976). Estudou pós-graduação em Palinologia, Instituto de Estudos Superiores da Universidade de Sorbonne, França; Instituto de Mineralogia da Universidade de Leyden, Holanda (1964); Arqueologia, Smithsonian Institution, Museu de História Natural, EUA (1970). Mestre em História Contemporânea da Venezuela, Universidade Central da Venezuela (1973). É autora de artigos científicos publicados em periódicos especializados nacionais e internacionais e imprensa. Publicou mais de vinte livros, entre os quais se destacam: Arqueologia, ciência e sociedade (1990); História, identidade e poder (1993); História como futuro (1999); Água e poder (2002) e Resistência e participação (2007). Recebeu vários reconhecimentos, entre os quais podemos citar: o Prêmio Municipal de Literatura, Manuel Díaz Rodríguez (1974); a Ordem do Mérito Acadêmico Dr. José María Vargas da Universidade Central da Venezuela em primeira classe (1993) e o Prêmio Nacional de Humanidades (2008). Trabalhou como professora na pós-graduação, como palestrante em universidades, centros de pesquisa e em mais de cem eventos científicos nacionais e internacionais. Atualmente é professora aposentada da Universidade Central da Venezuela e professora da Escola Venezuelana de Planejamento.
Baixe aqui, em PDF, o livro indicado por Maduro.
Edição: Joana Tavares