Os últimos anos têm imposto quebras de paradigmas inéditas para o estereótipo do brasileiro. Seria talvez pela Gen Z (os nascidos após meados dos anos 90)? Que não fica mais na rua e prefere o convívio virtual, perdendo saberes de outrora como a pelada com trave de chinelo? Ou seria sua postura questionadora, que não vê com bons olhos a imposição de resultados financeiros exigidas no esporte? Que indaga e não se emociona com a equação: o esporte está para a corrupção assim como retorno está para o investidor? Sim, a paixão “nata” do brasileiro pelo futebol parece estar realmente sendo questionada, como pode ser visto em várias matérias jornalísticas pré-copa do mundo de 2018. Crianças ainda sonham o sonho do pai de ser jogador de futebol, mas parece que não são mais a maioria.
Valendo-se das redes sociais como ferramenta para externalização de conhecimentos e opiniões, as gerações X, Y e Z não deixaram de curtir, comentar e compartilhar situações de desigualdades e ou corrupção e atribuir parte da culpa ao esporte, em especial ao milionário meio futebolístico. É claro que o esporte em si não é a causa imediata desses males, ele faz parte de uma cadeia que gira em torno do investimento, status, vaidade e egoísmo, que acaba refletindo em alguns momentos na vida do cidadão ordinário. Importante lembrar que o atleta em si não é um agente social e por isso não é atribuição de sua profissão envolver-se em questões além das obrigações de seus contratos. Mas, diante de tamanha exposição midiática, poderia ser de bom tom se apresentar realmente como um exemplo e muitas vezes um ídolo para as gerações.
Só o futebol funciona
O esporte pode não ser totalmente alienante, mas não raras vezes dificulta que o cidadão saia da zona de conforto. Minimizam-se pensamentos críticos em detrimento da felicidade de uma vitória no jogo. Nelson Rodrigues certa feita escreveu sobre o fracasso brasileiro na Copa de 1966 “uma das poucas coisas que funcionam no Brasil é, precisamente, o futebol”. Olhe para seu companheiro ou sua companheira, com o mesmo olhar que Nelson Rodrigues olhava para o futebol. O escritor, de maneira bem romântica, disse também que “o triunfo, na Suécia, em 58, foi para nós tão importante como a Primeira Missa. Começava o Brasil. Nós nos inaugurávamos. Tudo o que ficava para trás era o pré-Brasil. E basta comparar. Até 58, o brasileiro não ganhava nem cuspe à distância. O sujeito dormia enrolado na derrota como num cobertor. Ninguém acreditava no Brasil, nem o Brasil acreditava em si mesmo”. O fato de não acreditar em si é conhecido como “complexo de vira-lata” e é outro paradigma que vem sendo confrontado todos os dias, principalmente por novos protagonistas que visam escrever e valorizar as suas pequenas, mas relevantes histórias nacionais.
Estreia da Copa, jogo de truco em casa sem luz
Seguindo o raciocínio de que o Brasil é o “país do futebol” e criando paralelos com o modus operandi do jogo, a lei da vantagem é um consenso do futebol para se organizar de maneira mais fluída: o jogo não para quando ocorre uma infração, caso aquele que sofreu tal infração tenha conseguido levar vantagem, seguir o jogo. Assim, em “a vida é como ela é”, o brasileiro tem se acostumado a seguir o jogo, mesmo quando a lei da vantagem não o favorece. Como no caso de José Cândio e Bezinha, eles moram no sítio do Marimbondo, que fica na Barra da Estiva, que pertence ao Córrego do Monjolo, no distrito de Senhora do Socorro do município de Conceição do Mato Dentro, na zona central de Minas Gerais. José Cândido é nascido e criado no sítio, são 79 anos sem acesso a energia elétrica. No dia da estreia da seleção brasileira, as prioridades eram outras: o casal estava muito mais preocupado em receber amigos e familiares para a rodada de truco do que em ligar o gerador a gasolina para assistir o jogo.
“O jogo é jogado e o lambari é pescado”, diz um jargão futebolístico. Segue o mundial e as famílias da Ocupação Macuco, em Timóteo, no Vale do Aço mineiro, se revezam entre os que se indignam com os recursos financeiros aplicados ao futebol e a luta que eles travam pelo direito à moradia, com os que se emocionam e torcem pela seleção e se sentem mal quando o time perde. Nem o fato de que ainda existem obras não terminadas no país que sediou a Copa de 2014 minimizam os desejos de torcer e se exaltar com o futebol. Mas, mesmo nas ruas que possuem calçamento na entrada da Ocupação ou nos poucos muros de alvenaria, as tradicionais pinturas de outras copas não tomaram as ruas massivamente.
171 reais para três pessoas
“Copa, que copa? A televisão te mostra altos financiamentos, altos consórcios, eu moro em um lugar que não tem nem reboco. Tipo assim, eles me ilude a ter uma coisa que não posso e depois me oprime porque eu corro atrás daquilo que eles mesmo me mostrou e me instigou a ter”, foi assim que o filho de Joana, um jovem que dois anos e meio depois de sair da cadeia e diante da falta de oportunidade não viu outra opção para tentar melhorar seu rendimento financeiro a não ser voltar para o tráfico. Todos estão cientes dos riscos, a mãe não aprova, mas não sabe como resolver. A família mora no colar metropolitano do Vale do Aço, são três pessoas e a única renda fixa é o benefício de R$171 do Bolsa Família, a ponto de Joana pegar no caminhão de lavagem um punhado de alface para consumirem. Eles fazem parte de uma parcela significativa da população brasileira prestes a voltar para o mapa da fome da ONU, enquanto a lei da vantagem e benefícios seguem de maneira imoral contemplando magistrados e políticos com rendas mensais superiores a R$ 30mil.
Em Açucena, também no Vale do Aço, a economia solidária é uma roda que rola redonda na cidade, uma amostra de como com organização e boa vontade as coisas podem funcionar e mais pessoas conseguem aproveitar o tal estado de bem-estar social. Uma mentalidade menos competitiva e mais colaborativa que mostra, em pequena escala, uma vontade de mudança nos paradigmas vigentes. A cidade possui cerca de 11mil habitantes, mais da metade na zona rural, inclusive com população em via de ser reconhecida como quilombola. E é dessa zona rural que vem a comida que abastece as repartições públicas, que move uma cozinha solidária e que gera renda para famílias de pequenos agricultores que vivem longe do agronegócio. Não é a solução final, mas é um caminho para o fair play.
Edição: Joana Tavares