Em um momento em que muito se discute o avanço do conservadorismo sobre os corpos e a política, a população LGBT reflete, formula e propõe enfrentamentos às estruturas de opressão e exploração.
O livro “Hasteemos a bandeira colorida: diversidade sexual e de gênero no Brasil”, uma produção coletiva de diversos pesquisadores e militantes envolvidos nas mobilizações por direitos, será lançado no dia 17, como parte da 5ª Jornada pela Cidadania LGBT de Belo Horizonte.
Confira entrevista com Leonardo Nogueira, um dos organizadores da obra e militante do Levante Popular da Juventude.
Brasil de Fato – O livro envolveu 19 pesquisadores que também são militantes LGBT. Conta um pouco do processo de organização da publicação e de seus objetivos?
Leonardo Nogueira - Esse livro foi organizado no ano de 2017, mas é fruto de várias ações e encontros de formação que fizemos nos últimos anos. Ele envolveu fundamentalmente movimentos populares, como o Levante Popular da Juventude, o MST, a Editora Expressão Popular - que atua há mais de dez anos na difusão de um conhecimento crítico sobre a realidade brasileira – a Escola Nacional Florestan Fernandes e a Consulta Popular. Foi uma iniciativa que reuniu esforços de estudantes, professores e militantes. Quisemos pautar a construção do conhecimento que tivesse relação com a luta contra a discriminação de LGBT, para enfrentar o preconceito, a violência que nós LGBT vivenciamos diariamente.
O livro surge da iniciativa de sujeitos envolvidos nas mobilizações, nas vivências dos movimentos populares, no intuito de construir e sistematizar as reflexões que são urgentes num cenário de tanta violência. É um livro que faz um convite para que a população brasileira levante a bandeira colorida como forma de enfrentamento à LGBTfobia.
O livro busca articular a questão da LGBT com o contexto geral, de como vivem as pessoas LGBT. Por que falar também de relações de exploração e não apenas de opressão?
O nosso acúmulo a partir dos movimentos populares parte da ideia de que é importante discutir a orientação sexual, a identidade de gênero, mas é importante situar isso num contexto concreto. Se nos referimos ao Brasil, estamos falando de uma realidade em que a população LGBT majoritariamente faz parte de uma classe que vive os dilemas da exploração capitalista, sujeitos que só têm a condição de vender a força de trabalho em troca de um salário.
Ou seja, a população LGBT, na realidade brasileira, é marcada por contradições de classe. Desconectar as relações de classe da sexualidade e da identidade de gênero é um equivoco. É fundamental olhar para as pessoas LGBT no Brasil sabendo todas as violações que comparece no acesso às políticas de educação, lazer, cultura, saúde. Olhar para o LGBT sem considerar de onde ele vem, a classe que ele faz parte, é ocultar uma dimensão fundamental da vida do sujeito. Não basta lutar contra a LGBTfobia se eu não lutar contra a desigualdade social, para ter melhores condições de se inserir na sociedade, participar da política, transformar a sociedade. Por isso é fundamental pautar um projeto de vida para as pessoas LGBT no Brasil.
O Brasil é um dos país que mais mata LGBT no mundo, um dos mais homofóbicos do mundo. Por que isso acontece no nosso contexto social?
Nossa formação sócio-histórica é profundamente patriarcal e racista. Esses traços, que vêm do nosso processo de formação como Nação, acompanha nossa trajetória até os dias de hoje. A violência é muito banalizada no Brasil. Temos índices muito altos de violência contra a mulher, contra negros - especialmente a juventude – e contra a população LGBT. Essa violência também um recorte marcadamente de classe. Quem mais morre são LGBTs pobres e das periferias, principalmente travestis e transexuais, que se encontram muitas vezes em situação de pobreza, na prostituição, nas ruas.
Em geral são pessoas que não têm condições de estar nas universidades, de acessar o mercado de trabalho. São sujeitos alijados de uma série de direitos, de políticas públicas e sociais. Essa formação racista, patriarcal, que nunca abriu mão da violência também é marcada por um profundo conservadorismo, que não aceita as expressões da orientação sexual e da identidade de gênero. Além de não aceitar, tem um profundo ódio que faz com que surjam grupos, indivíduos, que se recusam a conviver com pessoas LGBT. E essa recusa se traduz não só como uma violência individual, mas como uma violência institucional, de um Estado que não assegura políticas públicas de combate à violência e não assegura possibilidades de participação dessa população na política, ou seja, pessoas inclusive que sequer podem vivenciar, nos marcos formais, a sua cidadania.
Como o golpe impacta sobre a realidade das pessoas LGBT?
Esse golpe de Estado tem um claro recado contra as pessoas LGBT, contra as mulheres, contra as pessoas negras do nosso país, contra os defensores de direitos humanos, em suma, contra os trabalhadores e as trabalhadoras. Esse golpe, além de retirar financiamento das políticas públicas para a população LGBT, engessar secretarias e ministérios que atuavam em prol dos direitos LGBT, é claramente contrário aos direitos de toda a classe trabalhadora brasileira.
Entre as forças golpistas estão lideranças conservadoras, como Marcos Feliciano, Jair Bolsonaro e outros. Isso acaba acelerando um contexto de violência que já vivíamos, tendo em vista que estas figuras são explicitamente contrárias a afirmação da diversidade sexual e da livre identidade de gênero.
De 2016 para 2017 cresceu assustadoramente o número de LGBT assassinados, foram mais de 100. Em 2017, batemos um recorde do qual não temos nada a nos orgulhar: foram assassinados 435 LGBT no Brasil, a maioria são pessoas trans. O golpe que a gente vivencia reforça ainda mais o caráter patriarcal, racista e conservador da realidade brasileira.
Ao mesmo tempo que há o avanço do conservadorismo e da violência, parece que aumenta a resistência e a visibilidade da população LGBT. As paradas, jornadas, são sinais de que há uma maior discussão sobre o tema?
Desde que surgiu na cena pública no Brasil expressões de resistência LGBT, nós não deixamos de ocupar as ruas. As paradas – que são mais recentes, dos anos 1990 pra cá – evidenciam que a população LGBT teve que romper o espaço privado, teve que romper o armário, romper com a ideia de que deveria se fechar, se apressar apenas num gueto, numa boate... tanto no dia 17 de maio [dia de luta contra a homofobia], como no 28 de junho, quando demarcamos o orgulho de ser quem somos, são momentos em que o movimento LGBT tem ocupado as ruas no mundo inteiro. E mais do que sair às ruas para lutar por nossa visibilidade é necessário conectar as nossas lutas com as questões que a própria conjuntura brasileira apresenta.
É necessário pautar legislações sobre a garantia e respeito à identidade de gênero, que criminalizem a homofobia, que garantam a ampliação do processo transexualizador no SUS, e muitas outras, que são questões fundamentais para combater o preconceito. Alguns direitos civis e sociais que conquistamos da década de 1980 para cá não foram implementados para a população LGBT e precisamos lutar por isso. Inúmeras são as denúncias de negligência do Estado no atendimento as demandas LGBT especialmente na saúde e na educação.
Neste ano eleitoral, é preciso fazer essa reflexão: quem são os deputados/as, senadores/as, governadores/as e presidente que queremos eleger? O movimento LGBT olha para este ano com o entendimento de que é preciso pautar as candidaturas que se comprometam com os direitos da população LGBT e que claramente assumam um compromisso com o povo brasileiro para reverter os retrocessos trazidos pelo governo Temer.
Um dos aspectos que o livro trabalha é essa relação entre o capitalismo, o racismo e o patriarcado. O que são esses elementos e como eles se combinam no caso da questão LGBT?
A gente procura entender que tanto o patriarcado quanto o racismo são formas de exploração e dominação anteriores à emergência, desenvolvimento e consolidação do capitalismo no Brasil. Esses sistemas anteriores não foram superados, pelo contrário, foram reiterados pelo capitalismo, que, no caso do Brasil, combinou estruturas arcaicas com desenvolvimento de estruturas modernas.
O patriarcado é fundamental para entender a violência contra LGBT no Brasil. O patriarcado é uma forma milenar, que tem por base a divisão sexual do trabalho e a propriedade privada, que se articulam e se reproduzem como forma de apropriação e dominação das mulheres, e também como forma de controle da sexualidade. É necessário que o patriarcado controle e imponha uma única forma de sexualidade compatível com suas necessidades de manter a dominação e exploração.
É imperativo que homens e mulheres tenham uma prática heterossexual e uma identidade de gênero cis, para que não possam vivenciar outras expressões de gênero, de orientação sexual, porque isso em alguma medida questiona a reprodução de um modelo patriarcal e monogâmico, no qual os homens detêm o controle sobre o corpo, a vida e o trabalho das mulheres. Não é uma lógica privada, que diz respeito exclusivamente à nossa vida pessoal, mas ocupa todas as esferas da vida social: o mercado de trabalho, a cultura, a ideologia, a política. Se a gente olhar para a vida das mulheres, dos/as negros/as e LGBT na realidade brasileira, perceberemos essas diferenças de forma muito clara, como a sub-reprensatividade, a diferença de salários, etc.
Há uma divisão sexual e racista do trabalho. Articular essas dimensões e compreender as vivências LGBT a partir da forma que elas se cruzam é fundamental para pensar formas de subverter essa lógica na sociedade brasileira. Isso exige, consequentemente, combater toda forma de fragmentação que apenas nos divide, impedindo a construção de um projeto comum que mobilize diversas forças sociais para enfrentar o capital.
Edição: Joana Tavares