Um senso de realidade que aceita o menos pior para impedir o pior possível
A escalada regressiva no Brasil está desafiando o senso de realidade. As sucessivas perdas econômicas, sociais e de direitos vão se acumulando como um monturo, deixando explícito o cenário de ditadura que nos espreita da esquina. Não se pode dizer que não está havendo reação popular, ela existe, mas enquadrada num modelo que não dá conta da potência do adversário, que merece a exata designação de inimigo.
O descrédito com a reação popular se tornou até mesmo argumento para explicar a continuidade do processo de desmonte do Estado e de enxovalhamento das instituições. Como o povo se mostra relativamente contido em suas manifestações, parece tratar-se de um jogo que se dá dentro da normalidade da dissensão democrática. As forças de esquerda no Brasil parecem aprisionadas numa armadilha perversa, falsamente republicana e explicitamente suicida.
Em todos os campos essa lógica corre o risco de se tornar uma espécie de compensação, uma caução da liberdade perdida em favor do acúmulo de forças para um próximo momento. No entanto, o que a realidade vem mostrando a cada dia é que a onda conservadora e entreguista não se contém por essa estratégia, antes avança de forma cada vez menos constrangida. O fascismo, e não é força de expressão, está a um passo.
O balanço de derrotas praticamente consolidadas contra o povo vai se avolumando em todas as áreas. No campo do trabalho, com a retirada de direitos históricos, ataque à sustentabilidade dos sindicatos, retrocessos na justiça laboral e preservação da garantia do cenário de desemprego estrutural. Nos programas sociais, com a retirada de investimentos inscrita a fogo no orçamento público das próximas décadas.
Na política de segurança, com a aposta na já fracassada estratégia de combate da violência com violência, fortalecendo o Estado policial de inspiração militar. E, pelos dados já apresentados, além de autoritária, incompetente. A intervenção militar no Rio de Janeiro é uma bandeira da despolitização, da consagração da lógica da guerra no lugar da construção das possibilidades de paz, que se tornou um modelo.
Na soberania nacional a derrocada segue seu curso, com o avanço da desnacionalização de setores estratégicos, como o do petróleo e da energia elétrica. A recente radicalização da privatização da Embraer é uma das atitudes mais francamente destrutivas da indústria brasileira. Que ainda vai mostrar toda sua abrangência.
Aparentemente contraintuitiva, a medida joga contra um dos setores mais intensivos em tecnologia e que alimenta uma cadeia importante em termos de produção e inteligência. Não se trata apenas de economia, mas de geopolítica. O Brasil anuncia a destruição de um segmento vitorioso para ampliar o lucro dos parceiros internacionais e, principalmente, fortalecer a competitiva política comercial dos... EUA.
A mesma escalada atinge a saúde, com a ameaça ao SUS, aos programas populares de assistência médica e farmacêutica. Sem falar da recente inversão do papel de regulação dos planos de medicina empresarial, papel da ANS, que alterou sua missão deixando de atuar em nome dos interesses da população para amparar os lucros do negócio.
Na educação, com a retração de recursos para a universidade e pesquisa, freio nas políticas de inclusão e na reforma do ensino médio sem debate consistente, amparada em marketing milionário e na construção de um imaginário salvacionista voltado para a educação privada. Sem falar nos acenos amigáveis ao reacionarismo da escola sem partido.
A recente cartada autoritária, possivelmente a mais radical de todas, já explicitou a morte das eleições populares deste ano. Quem manda nas eleições não é a Constituição e a vontade popular, mas as cortes superiores do Judiciário, altamente politizadas, que vão decidir se o candidato com maior preferência popular pode ou não concorrer. Aliás, uma decisão já sabida e a partir da qual vem se pautando do debate eleitoral, inclusive na própria esquerda.
Há um envergonhado senso de realidade que parece escrever uma história de derrotas sucessivas como um caminho viável, ou pelo menos minimamente aceitável. Como se fosse melhor uma eleição fraudada na origem do que eleição nenhuma; pleito sem o candidato mais popular, mas com a possibilidade de composição mesmo que historicamente fraudada; aceitação do menos pior para impedir o pior possível. Não são alternativas, são capitulações.
Não está mais na hora de fazer balanços equilibrados, propor táticas de longo prazo, estudar alianças aceitáveis. Como alertou Carlos Drummond de Andrade nos versos de “Os ombros suportam o mundo”, estamos no momento sem volta do imperativo político e moral: “Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem”. O poema é da década de 1930. O que estamos esperando?
Só há uma resposta aos que desafiam o povo a tomar uma atitude mais explícita de indignação: organizar as forças populares e tomar as ruas. Nem que seja para garantir das regras do jogo. A vida real não é Copa do Mundo, na qual a derrota indica que se dispõe de quatro anos pela frente para reavaliar os erros e dar o troco. Quando nem morrer é mais possível, a história precisa ser outra, como conclui o poeta: “A vida presente, sem mistificação”.
Edição: Joana Tavares