A campanha eleitoral já começou. Os golpistas tentarão transformar as urnas em mero rito para consagrar representantes amarrados à obra do Golpe de 2016. “Nós fincamos estacas, pilares que nenhum governante que venha vai conseguir mudar. Vai ter que continuar o que começamos", defendeu Michel Temer (MDB) em São Paulo, na terça (7), discursando para a Federação Nacional de Distribuição de Veículos Automotores.
Longe de ser um presente dos donos do poder, do dinheiro, das terras e dos meios de comunicação, o direito de votar, na verdade, foi direito pela pressão popular. Nas eleições de 2018, existem sérias ameaças de que essa conquista seja completamente esvaziada de seu potencial democrático, a fim de prorrogar o golpe com ares de democracia. Por isso, é preciso novamente olhar para a história das lutas sociais.
Na marra
Voto direto, individual, secreto e universal, sem limites de renda, sexo ou raça: uma cabeça, um voto. O primeiro país independente a reconhecer esse direito simultaneamente a mulheres e homens foi a Rússia, em 1917, quando o povo tomou o poder em uma revolução. Também pela revolução, no ano seguinte, foi a vez da Alemanha, depondo o imperador Guilherme II e instaurando um governo parlamentar. Antes disso, em 1893 a Nova Zelândia havia reconhecido o sufrágio em 1893; a Finlândia, em 1907, graças a uma enorme greve geral.
Liberais e quejandos enchem a boca para apontar Estados Unidos e Inglaterra como grandes pátrias da moderna democracia representativa. Na verdade, essas e outras potências capitalistas, visceralmente comprometidas com os horrores da escravidão e de ferozes ditaduras no hemisfério sul, só muito tarde admitiram o sufrágio para a maioria de seus próprios habitantes. E sempre a contragosto, com muita recusa e décadas de greves, passeatas e confrontos violentos.
Nos EUA, da Constituição de 1787 ao fim da Primeira Guerra Mundial, o voto quase sempre fora um privilégio da comunidade branca masculina. O primeiro grande obstáculo em todo o país foi demolido pelas mulheres do movimento sufragista, em 1920. Quatro anos depois, seriam os indígenas. No papel, homens negros poderiam votar desde 1870. No Sul, todavia, o direito foi garantido aos afro-americanos um século após a abolição, em 1965, pela força do Movimento dos Direitos Civis, sob influxo das lutas anticoloniais em Cuba, Vietnã, Argélia e outras nações.
Na Inglaterra, homens com mais de 21 anos e mulheres acima de 30 só tiveram direito ao voto a partir de uma lei de 1918. Até então, isso era uma regalia de homens com renda acima de certo nível. Para que a mudança acontecesse, o fato central foi a ação das trabalhadoras sufragistas, com greves, ocupações, sabotagens, enfrentamento a prisões e até uma mártir, a professora Emily Davison. Em 1913, ela se atirou sob o cavalo do Rei Jorge V, vindo a falecer dias depois. O lema, proclamado pela líder Emmeline Pankhurst, era: “fatos, não palavras”. No entanto, a mesma idade para eleitoras e eleitores só seria reconhecida na década seguinte.
O voto no Brasil
No Brasil, as eleições foram introduzidas já na colônia, em 1532, mas quase sempre com voto indireto e restrito a brancos, ricos, donos de terras e escravos, além de membros da burocracia estatal. Na Constituição de 1891, brasileiros natos ou naturalizados poderiam votar, sem limites de renda ou raça, mas mulheres e analfabetos não, o que excluía a imensa maioria. E, até 1934, o voto secreto não estava assegurado, o que permitia a interferência de gente muito poderosa na “escolha” de seus subordinados.
Somente em 1932, as sufragistas no Brasil conquistariam pela primeira vez o reconhecimento ao sufrágio feminino em um código eleitoral provisório, cuja escrita contou com a participação da feminista Bertha Lutz. Mas, novamente, a maioria das mulheres, e também homens, sobretudo negras e negros, ficariam de fora, por conta da restrição aos analfabetos, em um país onde a minoria tinha acesso à educação formal.
O reconhecimento do voto como direito universal de todas e todos, sem impedimentos de renda, escolaridade, raça ou sexo, é uma avanço recente da Constituição de 1988, que veio após uma década de lutas dos trabalhadores no Brasil. Não por acaso, um famoso jingle da campanha presidencial de 1989, a primeira após a ditadura militar, faz referência ao “primeiro voto”.
O que mudou
Qualquer pessoa atenta aos acontecimentos sabe que votar em alguém não resolve os problemas do país. Porém, na medida em que foi conquistado, esse direito permitiu prosseguir as lutas em condições melhores do que antes. Isso porque, quando o povo entra no sistema e se torna maioria do eleitorado, aumenta seu poder de pressão. Cresce, então, o número de políticos ocasionalmente interessados em atender às reivindicações populares.
Não por acaso, esse direito sempre foi atacado, com regras fragilizam candidaturas vinculadas a mulheres, negros, povos tradicionais e o conjunto dos trabalhadores. Isso acontece, por exemplo, quando se permitem doações milionárias de campanha e recursos públicos muito desiguais para diferentes partidos e candidatos.
No Brasil, não aceitar a vitória do adversário quando ele tem vínculos com reivindicações populares, também é algo comum. Em 1950, a oposição tentou impedir a posse de Getúlio Vargas alegando que ele não tinha maioria absoluta – o que não era exigido pela Constituição. Em 1956, tentaram barrar o recém-eleito Juscelino Kubistchek. Em 1961, com a renúncia de Jânio Quadros à Presidência, procuraram impedir seu vice, João Goulart, com o parlamentarismo. Em 2014, não aceitando a vitória de Dilma Rousseff (PT), buscaram inviabilizar o governo, sangrando-o até o Impeachment.
Ao que parece, todavia, a forma mais drástica de minar o voto é cercear o direito de ser votado e se eleger, alterando as regras do jogo arbitrariamente ou tirando da disputa adversários importantes, promovendo sua perseguição, condenação e prisão sem provas. Lembra algo dos dias atuais?
Edição: Joana Tavares