Ao tentar recobrar a memória sobre a figura enigmática e marcante do senhor Vicente Gonçalves, esforcei-me para retornar a um passado longínquo, buscando desvendar alguém com quem convivi muito. O popular Vicentão, pessoa ímpar, deixou um legado na vida do povo operário, lutador, desprovido de moradia e de condições básicas de sobrevivência. Recentemente foi homenageado com seu nome sendo dado a uma ocupação no Centro de Belo Horizonte.
Lembro-me que quando meu pai, o indígena Eni Carajá, falecido 1973, trabalhava a argila que recolhia no pântano perto do local onde está a estação do metrô na Gameleira, em BH, com um grupo de homens que faziam adobes (espécie de tijolo firme e de liga com barros, argilas, saibres e sem cimento), eu perguntava quem eram aquelas pessoas.
Meus três irmãos mais velhos me diziam: é o Raimundo Gil, o José Martins Sobrinho, o Vicentão, o João Rolha e o senhor Liberalino. Como criança especial devido à doença rara, e curioso, quis ver de fato quem eram aqueles moços, que estavam sempre juntos.
Eles sempre indo para um local descampado, com poucas residências, falavam de coisas meio estranhas, com palavras difíceis e desconhecidas. Mas eu já pegava ali uma certa malícia, percebia ideias. Com o tempo, meu pai foi me contanto que ele viu de perto o genocídio de parte do seu povo, seus pais e outros familiares do Povo Yni, Tronco Gê Xambioá, que morreram por causa de grilagem de terras na região da Ilha do Bananal - onde atualmente é Tocantins -, e que ele havia saído para o mundo para sobreviver.
Organização da luta
Ele contava que um senhor muito conhecido, político tradicional, chamado José de Magalhães Pinto, que era banqueiro e da Associação Comercial de Minas Gerais e também governador de Minas Gerais, perseguia aqueles moços. Eles haviam constituído a Federação das Favelas da União dos Trabalhadores da Periferia - UTP e também atuavam no movimento estudantil e vinham lutando para que o povo tivesse moradia digna. E esse ex-governador ofertou as baias do Parque de Exposições da Gameleira para moradia provisória dos “sem casa” em 1962, e assim surgiu uma revolta não registrada na história.
Vicente Gonçalves, o Vicentão, ainda jovem idealizava o atendimento integral dos direitos. Para ele, mais que o acesso à terra, era preciso que ela viesse acompanhada de infraestrutura digna para moradia, escolas, saneamento, igrejas dentre outros.
Resolveram a partir do Parque de Exposições fazer a ocupação dos terrenos do dono do Hotel Financial e da Imobiliária Fayal, que atuavam no eixo central da Avenida do Contorno, próximo a Praça Sete de Setembro. O dono, Antônio Luciano Pereira, era mega-grileiro, enfrentava o povo e persuadia políticos a agir em seu favor.
Este latifundiário urbano/rural tinha a estratégia de plantar madeira de lei protegida (eucalipto) e se tornava dono das glebas em que plantava. Assim, o poder público nada poderia fazer a não ser proteger. Mas a população o enfrentou.
Os tais moços, considerados estudantes subversivos, liderados por Vicentão, decidiram derrubar eucaliptos e construir as cabanas, choupanas e barracos de lona na luta por moradias dignas. Essa ação, considerada ilegal, somente deu certo pela união dos moradores que construíram na época a Associação Beneficente dos Moradores da Vila – ABMC, que ainda existe sobre a denominação de Associação dos Moradores do Aglomerado Cabana, entidade gloriosa e formadora de opinião junto ao movimento comunitário.
A extensão desta luta vitoriosa do Vicentão e equipe chegaria à Vila Oeste, Vila Embaúbas, Pedreira, Fundo da Colina, Vista Alegre, Madre Gertrudes, Nova Gameleira, e atendeu famílias carentes. Esses locais tinham nomes pejorativos tipo Gogó da Ema, Buraco da Coruja e Pracinha dos cachorros.
Vicentão e seu grupo conquistaram um Centro Social, que funciona na Rua Professor Mata Machado, homenagem a Edgar de Godoi da Mata Machado, que foi secretário de Educação e muito contribuiu nas negociações para que o assentamento fosse aceito pelo Magalhães Pinto.
Ali surgiram a Escolas Combinada Cabana do Pai Tomás, que foi construída em container de latas e posteriormente urbanizada. Atualmente, é local do centro social que se encontra sob gestão da Associação dos Moradores do Aglomerado Cabana, a Igreja São Geraldo, a Capela Nossa Senhora Aparecida, a Igreja Assembleia de Deus e outros equipamentos sociais.
Neste centro social eram realizados memoráveis bailes de carnaval. Lembro que eu gostava de vestir de marinheiro e hoje tenho pavor disso. Lá eram exibido filmes no telão, que me ajudaram a compreender o mundo e, inclusive, a entrar na luta contra a segregação e o estigma das pessoas que tinham hanseníase. Na época, quem tinha televisão era elite.
Militância e perseverança
Com 12 anos de idade eu tinha que ir nas reuniões da Associação Comunitária com a minha mãe, Maria Petronilha Neves, e ali captava as conversas de como se daria o enfrentamento, as adversidades, a luta contra a carestia e por saúde pública, uma vez que não havia saneamento básico e boa parte dos moços lutadores estavam na clandestinidade ou presos politicamente, sem falar nos desaparecidos.
Vicentão, portanto, foi um líder inspirador não somente para meu pai e para mim, mas para um significativo grupo de moradores. Vira e mexe ele era preso naquelas viaturas veraneio da ditadura, indo direto para o DOPS na Avenida Afonso Pena. Os soldados do Exército, com aqueles capacetes redondos, chegavam dando ordem de prisão e o levavam. Porém, existia a resistência popular no sentido de preservar Vicentão vivo.
Os ex-prefeitos de Belo Horizonte Jorge Carone Filho, Luiz Gonzaga Souza Lima, Oswaldo Pierucetti, sempre o referenciavam como um grande aliado no enfrentamento ao grileiro Antônio Luciano Pereira. Lembro que desses debates, o João Pedro Gustim, ex-secretário do trabalho, criou o Prodecom – Programa de Desenvolvimento de Comunidades, quando se discutia a titulação daquelas propriedades para legalização e regularização fundiária, algo muito desejado pelos moradores e jamais concluído.
Lembro-me de que quando participava de um grande debate dentro da igreja São Geraldo e ao utilizar o microfone tive uma crise de tosse. Vicentão gritou lá do fundo: "arruma água e reinscreva o Índio pois ele tem muita coisa a falar". E o ex-prefeito Marco Aurélio Carone assim o fez, e quando falei, expressei que todas as prioridades de investimentos naquela região deveriam ser amplamente consultadas. Daí surgiram os abaixo-assinados oriundos das prioridades comunitárias, conquistando o Centro de Saúde Cabana e a rede de esgotos da Copasa.
Portanto, apesar de todas as intempéries da vida, sinto-me família agregada do Vicentão, que não sabia se era comunista, socialista ou anarquista, mas tinha certeza que era um defensor dos princípios humanistas, de direitos humanos para proteção dos pobres, oprimidos, desempregados e sem mais valia.
Nessa caminhada pude, lá dentro do bairro Cabana, conviver com os baluartes e contemporâneos do Vicentão: João Rolha, João do Banco, Zé Quirino, Eni Carajá, Dona Preta, Dona Juracy, Senhor Geraciano, Dona Iraci, Dona Juraci, Dona Conceição, Lalado, Odete, Senhor Germano, Avelino e Fogão. Dentre outros, que, alguns já in memoriam, devem ser referenciados neste artigo por terem feito a rede de esgotos alinhando aros de pneus; a conquista da calçada poliédrica; asfaltamento; urbanização. Mas, sobretudo, conquistaram o maior patrimônio: cidadãos conscientes, lutadores e que não permitem nenhum direito a menos.
Vicentão, sua equipe e a comunidade da Cabana produziram cidadãos críticos para que os mesmos estivessem espalhados na academia, na OAB, nos movimentos sindicais e populares ajudando a construir uma sociedade justa, fraterna e democrática.
Vicentão atuou no apoio às principais lutas sociais e libertárias, dos quais destaco a passeata dos 100 mil em Belo Horizonte, o enfrentamento a Tradição, Família e Propriedade - TFP, que na minha visão era uma sucursal da extinta Ku Klux Klan.
Ele também esteve conosco no comitê contra a carestia, no movimento pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita, no enfrentamento ao Governo de Tancredo Neves e Hélio Garcia, no combate ao pacote 2045 e a hiperinflação de Sarney. Ajudou a debater a unidade do funcionalismo público mineiro, teve trajetória na UNSP e nas entidades sindicais do serviço público estadual.
Diria finalmente que quaisquer homenagens a Vicentão já virão atrasadas, mas devem ser feitas, pois esse líder social pouco antes de sua morte estava no limbo, no esquecimento, assim como fizeram com parte dos que com ele conviveram, em especial João Mendes, Milton Freitas e Joaquim de Oliveira, que deram tom operário na construção do PT com o mote "trabalhador vota em trabalhador".
Para quem conviveu com Vicentão, ele não morreu. O que houve foi um encantamento por termos vivido e presenciado esse belo trabalho do Vicente Gonçalves nessa trajetória em defesa dos que mais necessitam, os pobres, os vulneráveis e os que lutam por uma sociedade justa e igualitária.
*Carajá Filho é diretor do SindSaúde e presidente da Federação das Associações de Deficientes de Minas Gerais - FADEMG.
Edição: Joana Tavares