Minas Gerais

SETEMBRO AMARELO

Artigo | Tem que sentir, né?

Nem sempre é fácil enxergar o limite entre tristeza e depressão

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |

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Reunião na Unidade Básica de Saúde da Família do Dom Almir, em Uberlândia (MG)
Reunião na Unidade Básica de Saúde da Família do Dom Almir, em Uberlândia (MG) - Reprodução

Quando cheguei, na segunda (10), na Unidade Básica de Saúde da Família do Dom Almir, onde estou fazendo estágio, acontecia um grupo que fazia parte das atividades do Setembro Amarelo, a campanha nacional de prevenção ao suicídio. Numa grande sala de reunião, pessoas do bairro (a maioria delas mulheres de meia idade) estavam sentadas junto a profissionais de saúde para debater o tema.

O Dom Almir é um bairro de Uberlândia que surgiu de uma ocupação urbana iniciada nos anos 1980. Hoje está regularizado, mas continua sendo um bairro periférico, que, como tal, lida com problemas comuns às favelas de nosso país: ausência de uma boa coleta de lixo, de asfalto (a poeira faz com que várias crianças tenham rinite alérgica), um índice altíssimo de gravidez na adolescência, muitos meninos envolvidos com o tráfico de drogas.

Apesar disso, ou talvez por isso mesmo, por toda a luta que marca a história desse lugar, sinto que há ali muita solidariedade entre os moradores. Solidariedade essa que é o nome da principal avenida do Dom Almir. Aliás, essa foi uma das coisas que mais me chamou atenção logo que cheguei, várias ruas têm nomes como Rua do Povo, Rua dos Votos, Rua da Ternura, da Memória, da Unidade, da Esperança.

Talvez seja também por conta dessa história que quase todo mundo por ali se conhece. Durante o grupo, as pessoas iam compartilhando suas vivências e opiniões, e sempre chamando alguém pra confirmar: “foi assim ou não foi, Fulana?”, “Beltrano é meu vizinho, ele pode contar”.

Em dado momento no grupo, alguém comentou sobre a diferença entre tristeza e depressão. Fiquei pensando naquilo. Nem sempre é fácil enxergar esse limite.

É importante prestar atenção e procurar ajuda quando alguém diz que não tem se levantado da cama, não tem tido energia para as coisas básicas da vida, quando notamos que essa pessoa tem se isolado e, principalmente, quando diz que tem tido vontade de morrer. São alguns sinais de alarme que nos fazem pensar em um episódio depressivo e, para casos como esse, familiares e amigos devem estar alertas, e a equipe de saúde precisa intervir.

Mas e a tristeza, é sempre um problema?

Curiosamente, algumas horas depois de terminado o grupo, numa consulta de rotina, uma senhora de mais de oitenta anos veio me ensinar a resposta para essa pergunta.

Ainda antes de adentrar o consultório, ela já me surpreendia: lendo o que estava na ficha da triagem, antes de chamá-la, encontrei: “queixas de saudade”.  Foi a primeira vez que vi algo assim num registro médico.

Revisando o prontuário vimos que na consulta passada tinha sido prescrito um antidepressivo. E que ela era viúva, tinha perdido o marido há um ano e meio e agora morava sozinha. Ficamos logo preocupadas.

Entramos receosas na consulta, mas encontramos uma mulher muito altiva, com um sorriso terno e um aperto de mão firme. Muito falante, contava vários detalhes de sua história e ria. Falou do marido com muito carinho e saudade, mas de uma forma tranquila. E então perguntamos se ela estava bem. Sim, dormia bem no geral (tirando três noites nos últimos meses em que precisou do antidepressivo só para adormecer – fora isso, não tinha precisado da medicação), comia bem, não sentia dores, ia à academia três vezes por semana.

“Passei na psicóloga aqui do postinho e ela disse que eu estou normalzinha. Ela acha que por enquanto não preciso de consultas toda semana, disse que qualquer coisa eu posso voltar. Eu também acho”, ela me disse.

Quando perguntamos sobre o luto, ela disse algo que eu quis guardar comigo e que agora compartilho. Disse que tinha tido a sorte de viver quase quarenta anos em paz com seu marido. Que sentia tristeza sim, afinal “quarenta anos são muitos dias, filha. Quando o outro parte... a gente tem que sentir, né?”.

Foi então que me veio com toda nitidez: a depressão é uma doença que tem tratamento e é importante tratá-la. As medicações antidepressivas têm o seu lugar e salvam vidas em muitos casos. A tristeza, por outro lado, não precisa ser medicada. A tristeza faz parte da vida.

Me lembrei de ter lido em algum lugar que a palavra afeto dá origem ao verbo afetar. Ter afeto é afetar-se. Não podemos passar indiferentes pelas coisas que nos são caras. Seja uma pessoa que amamos, nossa família, amigos, nosso povo. Tenho afeto porque me afeta. Me afeta porque tenho afeto. O sofrimento, a morte, a ausência nos afetam e nos transformam.

É preciso afetar-se. Essa pergunta, que era em verdade uma afirmação, tecida por uma boca enrugada, espremida entre uns óculos e um sorriso, dita assim tão simplesmente, como uma obviedade, me pegou desprevenida e chacoalhou meu sentimento.

É, minha querida, tem que sentir, né? Tem que sentir.

*Sofia Alves é estudante de medicina e militante da Consulta Popular.

Edição: Larissa Costa