Existem certas causas que pensamos serem perdidas antes mesmo de partir para luta. Algumas para as quais achamos que seria inútil se dedicar. E, de repente, impulsionado pelo grande movimento popular que já tomou todas as frentes, entendemos que sim, é possível ter esperança.
Quando após a prisão de Lula em abril o Partido dos Trabalhadores (PT) anunciou que defenderia sua candidatura até o fim, confiando no sucesso dessa estratégia, muitos, mesmo à esquerda, duvidaram dessa aposta. Não foi o caso de duvidar das ilegalidades do julgamento sofridas por Lula ou de seu direito a ser candidato, mas, dado o enorme investimento da oligarquia brasileira para destruir o ex-presidente, a perspectiva de um resultado exitoso era quase impossível de se considerar.
Contando com o apoio de parte da população ao impeachment de Dilma Rousseff em 2016, as forças golpistas, políticas, judiciais e midiaticas, apostavam num cenário plausível: Lula na prisão, privado de seu poder de fala, humilhado por uma condenação aumentada em segunda instância, demonizado por uma propaganda midiática diária, acabaria perdendo sua popularidade e pouco a pouco não se falaria mais dele.
Lula, um projeto político que o Brasil ainda quer defender
Mas aconteceu o contrário. Mesmo seis meses fora do cenário político, as intenções de voto a favor de Lula só aumentaram. Atingindo no final de agosto 39% dos votos no primeiro turno e a garantia de ser eleito no segundo turno em todos os cenários. Em um país massacrado pela crise econômica, pelo desemprego, pela redução dos gastos públicos, pela destruição do Estado de direito, pelo aumento de assassinatos políticos, esse resultado está longe de ser trivial.
Enquanto as manifestações de rua contra o golpe se esvaziaram e a alternativa fascista e antidemocrática de Jair Bolsonaro se consolidou atraindo hoje mais de um quarto da população, o crescimento da popularidade do ex-presidente Lula não estava assegurado. De fato precisamos lembrar que ele herda o polêmico legado econômico do segundo mandato de Dilma Rousseff e sofre um ataque midiático constante há dois anos que o chama diariamente de analfabeto, operário ignorante ou de vergonha nacional.
Nesse contexto, a possibilidade de que o povo brasileiro continue vendo na pessoa de Lula a melhor saída para o país e, assim, legitima o projeto político e social que ele implementou entre 2002 e 2014, já é uma grande vitória. Pode não ser suficiente para trazer este projeto de volta ao topo do executivo, mas mostra que a redistribuição social, a melhoria dos direitos humanos, a democratização do ensino superior e a participação do cidadão são questões políticas que a sociedade brasileira ainda está pronta para defender.
O fracasso do golpe nas urnas
Desta primeira vitória decorre uma segunda. Com um apoio de menos de 2,7% da população, o governo Temer está esmagado, entre escândalos de corrupção na cúpula do executivo, dois pedidos de impeachment engavetados pelo Congresso e a derrota da reforma da Previdência que os deputados, já em campanha, preferiram não aprovar para salvar suas reeleições. Assim, o candidato do governo, o banqueiro Henrique Meirelles (MDB) alcançou só 3% das intenções de votos e prefere se valorizar com seus anos dourados na direção do banco central do governo Lula, em vez de lembrar aos eleitores que ele acabou de sair do Ministério da Fazenda de Temer.
Da mesma forma, Geraldo Alckmin (PSDB) define-se como oposição enquanto está sendo apoiado por todos os partidos que compõem a atual maioria, o chamado centrão. Pela legislação eleitoral esta série de apoios a seu favor permite que ele tenha 40 vezes mais tempo de propaganda na TV e no rádio do que Jair Bolsonaro, mas seu desempenho eleitoral não decola para além dos 10% das intenções de votos. Enquanto Alckmin tentava se distanciar do governo para impulsionar sua campanha, Temer o provocou publicamente com dois vídeos nas redes sociais para frisar os laços intrínsecos entre o PSDB e o atual governo.
Enquanto o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 foi encenado como a cura para todos os males do país, o ridículo resultado de Meirelles e Alckmin nas pesquisas mostra que o projeto neoliberal liderado por Temer só poderia ser implementado contra a vontade do povo, mediante uma intervenção. Claro que a alternativa oferecida por Bolsonaro, agora favorito após o afastamento de Lula, é tanto quanto e até mais perigosa. Se for eleito, não há duvida que ele dê continuidade ao programa iniciado por Temer, apesar de representar para muitos eleitores, seduzidos por sua candidatura, um potencial de mudança. Mas embora de direita e apoiadora do golpe, a família política de Bolsonaro é ainda pior. Bolsonaro pode ser considerado como um beneficiário das consequências do golpe.
Sempre mais vozes internacionais para denunciar a verdade
Último ponto essencial deste período é a multiplicação das vozes no exterior que se levantaram para denunciar a injustiça sofrida por Lula. Mobilizar a opinião internacional não é uma tarefa fácil, especialmente quando se trata de um caso nacional envolvendo uma jurisdição específica. Desde 2016 o PT e os advogados de Lula não mediram esforços para comunicar com o exterior, sem muito êxito até então. Mesmo a destituição de Dilma Rousseff deu origem a poucas declarações, além dos partidos políticos e figuras de esquerda.
Mas com a multiplicação dos abusos judiciais e ao se aproximar das eleições, a situação tomou outro rumo. Primeiramente com uma cobertura midiática particularmente densa por jornais ocidentais, Le Monde, New York Times, etc. Depois, em maio, uma tribuna co-assinada por seis ex-presidentes europeus, frisa pela primeira vez o caráter ilegítimo do impeachment de Dilma Rousseff e defende o direito de Lula de ser candidato. Em seguida, em julho, vem uma carta assinada por 29 parlamentares norteamericanos, e também a mensagem do Papa ; a visita do ex-presidente do Parlamento Europeu Martin Schulz ; outra carta assinada por 38 deputados franceses; e intervenções de políticos, como Dominique De Villepin, membro da direita francesa, ex-ministro das Relações Exteriores de Chirac, que recentemente viajou ao Brasil à convite da Fundação Perseu Abramo.
A resolução do Comitê de Direitos Humanos da ONU, publicada em 17 de agosto, fortaleceu ainda mais as manifestações de apoio. Pela primeira vez uma instituição internacional se pronunciou sobre as ilegalidades do processo contra Lula. O Comitê exigiu que Lula pudesse participar das eleições e ter acesso à imprensa e a seu partido, mesmo de sua cela. A declaração indica claramente que o comitê não terminou a análise do processo. Mas considera mesmo assim que enquanto houver recursos possíveis, esta medida temporária visa a impedir que resultados irreversíveis decorram da ausência de Lula na votação. Trata-se de um pedido imediato e vinculante, uma vez que o Brasil ratificou o protocolo facultativo do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
Essas intervenções públicas revelaram pouco a pouco ao mundo o nível de gravidade da luta de Lula e da esquerda brasileira, confirmando assim que essa injustiça é sim bem real. É preciso de fato ter em mente que com o golpe e a Lava Jato, o Brasil mergulhou em um ambiente de lawfare, que consiste em organizar o confronto usando os recursos da lei. Portanto, para quem não é especialista, torna-se muito mais difícil entender as questões em jogo, pois elas são aparentemente legais. Pouco são os que conseguem analisar se a lei esta sendo corretamente aplicada ou não, e consequentemente poucos são os que tem capacidade de opinar.
Essa verdade que emerge diante do mundo carregada por vozes que ressoam longe, mostra que o véu da impunidade praticada pelos atores do golpe caiu. O primeiro turno dessas eleições está se aproximando e a confirmação da inelegibilidade de Lula é um duro golpe para o PT contra a extrema direita, que agora é a favorita nas pesquisas. Independentemente do resultado, a longa luta que toda a esquerda brasileira enfrentou deixou uma marca profunda e conseguiu abalar a ordem estabelecida, colocando as marcas de uma força real de resistência que parece ter vindo pra ficar.
*Florence Poznanski é militante do Parti de Gauche/France Insoumise. Artigo publicado originalmente em francês
Edição: Joana Tavares