O golpe militar deixou de ser uma ameaça para habitar sem máscaras o cotidiano
O atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, se inscreveu na escola dos revisionistas e chamou a ditatura militar de “movimento”. O resultado do primeiro turno da eleição deixou a sociedade brasileira na iminência de conviver, nos próximos quatro anos, com uma leva de militares que fizeram questão de ostentar a patente em suas candidaturas. A intervenção militar no Rio de Janeiro foi vendida como solução para a criminalidade e aumentou a violência no estado.
A população carioca tem ainda como um dos candidatos ao segundo turno um ex-juiz que ameaça de prisão seu oponente caso seja criticado em debates. Delações requentadas são apresentadas às vésperas da votação. Juízes furam filas para colocar em pauta ações que criminalizam a política. A censura volta à carga: cala a boca não morreu quando se trata de Lula. Promotores fazem de suas redes uma plataforma de propaganda eleitoral.
O golpe militar, com reforço do ativismo do Judiciário, deixou de ser uma ameaça para habitar sem máscaras o cotidiano. Mais do que isso, é vendido como um alerta em caso de derrota de Bolsonaro no segundo turno. Como o vice do candidato já é general, tem a desfaçatez de falar em autogolpe. Essa naturalização do arbítrio é uma consequência do clima que se estabeleceu no país e que tem como o mais triste exemplo as manifestações de ódio, violência e até mesmo morte perpetradas pelos que são incapazes de conviver com a diferença.
A banalidade do mal se alimenta da autorização expressa pelo comportamento do líder do “movimento” que toma conta do país. Bolsonaro desconfia do processo democrático, recusa gestos de civilidade com grosseria, não condena as ações violentas de seus eleitores, reafirma seus preconceitos a cada dia: machismo, misoginia, homofobia e racismo. Não só preconceitos, mas também crimes explícitos, como defesa da tortura e de ações policiais além dos contornos da lei. Foge do debate direto se escorando nas redes sociais articuladas por batalhões de soldados da mentira e se manifesta numa linguagem imatura e anti-intelectual.
Medo encobre a verdade
Quando se traduz sua pauta moral para o campo da economia e das políticas públicas, a regressão mostra então todas as suas garras e interesses. As desprezíveis bandeiras em termos de valores, com reforço nas diferentes formas de discriminação e violência, se tornam ainda mais perversas quando revelam seu papel de desvio dos debates das questões pragmáticas da política públicas e da economia. Não fosse em si mesmo horrorosa, a pauta moral desvia a atenção dos reais interesses da candidatura e de seus financiadores.
O medo não vence a esperança, ele encobre a verdade. Cada tema que é falado expressa o silêncio de outro: kit gay em vez de reforma da previdência; posse de armas em vez de direitos sociais. E segue: sexualização da criança no lugar da privatização de estatais; deboche sobre diversidade da formação social brasileira silenciando o debate contemporâneo sobre os rumos da educação. No campo, criminalização dos movimentos populares como complemento da entrega das questões ambientais aos interesses do agronegócio. Uma no cravo, outra na ferradura.
Com essa estratégia, o tosco Bolsonaro é o que de melhor o mercado dispõe para manter sua lógica e dar continuidade exponencial ao serviço iniciado por Temer e rejeitado pela população.
Essa é a situação dentro de casa. Para o resto do mundo, é ainda pior.
Kinder ovo monstruoso
Objeto de execração internacional de figuras de destaque do cenário intelectual e político, a cada dia o ex-capitão se torna alvo de repúdio de grande parte da imprensa mundial, inclusive de veículos conservadores e liberais. O que o Brasil chama suavemente de direita ganha a límpida classificação de fascismo. Bolsonaro envergonha o mais conservador dos xenófobos europeus ou dos ultraliberais americanos. Até mesmo quando emite sinais de sua submissão aos interesses dos países dominantes no campo econômico.
Mais do que comparar duas propostas, como vem sendo defendido e que será inevitável num turno polarizado, o desafio é mostrar que, no caso de Bolsonaro, há dois projetos embutidos numa mesma embalagem, como um kinder ovo monstruoso. Quem compra (enganado) o moralismo, o combate a corrupção, a retórica antissistema e a sensação de segurança pelas armas, leva junto o desemprego, a destruição do SUS, a mercantilização da educação, a entrega do patrimônio público, a desistência da aposentadoria justa e o autoritarismo.
No começo é apenas um manual sobre educação sexual, em seguida uma fogueira de livros. No primeiro momento, é a defesa dos valores da família tradicional, logo a violência contra mulheres e LGBTIs. O primeiro passo é a flexibilização da legislação, em pouco tempo o arbítrio dos direitos tutelados pelo Estado. Num dia a urna eletrônica não é segura, na manhã seguinte a eleição é uma fraude. O relógio aponta a hora de combater a corrupção do sistema político, com uma volta do ponteiro é momento e fechar o Congresso. A Constituição precisa de emendas, mas talvez seja melhor trocá-la por uma carta feita por notáveis, sem a contaminação do povo.
O mais grave é que tudo isso não parece uma distopia paranoica, mas uma realidade paralela que espreita da esquina e foi percebida primeiro pelo olhar que vem de fora. Nem mesmo Roger Waters, em sua recente apresentação em São Paulo, foi capaz de abrir os olhos de todos. Mesmo ele, que há anos vem sendo o guia moral e estético da recusa do autoritarismo. Talvez tenha sido um urgente raio de luz sobre o lado escuro da lua.
Para implantar uma pauta antipopular pode se apelar para a mentira, para a manipulação dos meios de comunicação, para o golpe parlamentar, para o ativismo judicial, para a criação de uma atmosfera de insegurança e medo ou para a ditadura militar pura e simples. No caso de Bolsonaro, vem tudo no mesmo pacote. É o “movimento” de 2018. Se as mentiras devem ser combatidas com a verdade, a violência, por sua vez, quando chegar a hora, vai exigir outras formas de ação. Ainda é possível desarmar essa bomba. A contagem regressiva já começou.
Edição: Joana Tavares