Minas Gerais

Opinião

Artigo | Preciso renovar a esperança

Eu, que estive rodeada de benevolência por muito tempo, agora rodeada por crueldade, preciso achar um modo de me lembrar

Brasil de Fato |
"Caminhamos um dia mais. Porque logo ali, atrás daquela montanha que se ergue diante de nós, além do 28 de outubro, lá está a nova mulher"
"Caminhamos um dia mais. Porque logo ali, atrás daquela montanha que se ergue diante de nós, além do 28 de outubro, lá está a nova mulher" - Foto: Mídia Ninja

“Sofia, você é muito idealista.” Não sei quantas vezes ouvi essa frase na vida.

Nesses últimos dias tenho me perguntado: será que era idealismo desmedido? De fato, já fazem alguns anos que sou movida pela esperança. E eu me lembro exatamente quando foi que ela brotou em mim.

Foi dentro de um imenso parque em São Paulo, fazia frio, milhares de jovens se espremiam debaixo de uma enorme tenda para debater um projeto para este país. Na hora do almoço, todos tínhamos tarefas: lavar o banheiro, servir o almoço, fazer rondas de segurança. Tudo naquele espaço era responsabilidade coletiva, do começo ao fim. Lembro que durante uma das mesas de debate alguém comentou comigo que as lideranças do movimento não estavam ali, estavam cortando batatas pra janta, para que os mais novos tivessem a chance de ouvir. E eu pensei “era isso que eu estava procurando esse tempo todo”.

Na volta pra casa, fizemos uma reunião de avaliação. Uma companheira disse “essa é uma escolha de vida”. Isso se concretizou no meu coração. Era uma escolha de vida, e eu estava fazendo a minha. Dali em diante eu tinha lado. Dali em diante meu futuro tinha outras razões de ser.

Desde então, nesses últimos cinco anos, conheci seres humanos incríveis. E fiz a opção de enxergar isso. E deixei isso crescer em mim, e tomar o lugar da descrença. Vi pessoas abrirem mão de tudo, do conforto de uma casa, para lutar ao lado do que era justo. Vi pessoas doarem os próprios livros, para que outros tivessem oportunidade de ler. Vi pessoas que recusaram alimento por quase um mês para que seu povo não tivesse que morrer de fome. Vi, olhando de espreita, com os olhos do coração, as maiores generosidades sendo praticadas em silêncio, sem nenhum holofote, sem (quase) nenhuma testemunha, por pura bondade, que fluía fácil do peito simplesmente por existir e estar ali. Eu escolhi ver e guardar na alma. Fiz a opção de acreditar na humanidade.

Disse isso muitas vezes: “não sei o que existe depois dessa vida, mas sei que temos que fazer o possível pra construir o Paraíso aqui neste mundo”. “Não sei se acredito no sobrenatural, mas sei que acredito na humanidade”.

Hoje minha fé fraqueja. Nesses últimos dias, como tantos, tive que olhar para a violência. Talvez, dentro de mim, eu estivesse querendo maquiá-la. Talvez, como Clarice, eu estivesse, em segredo, querendo ignorar o grande Rato de Deus, e fazendo assim, eu me vangloriasse de amar a humanidade. Amando com um amor fácil, de quem fecha os olhos para o que há de pior.

Hoje, me é solicitado um passo a mais. Preciso aprender a amar a humanidade sabendo que a humanidade também é como o homem que conheci hoje numa Visita Domiciliar, que bate na esposa e que nos escorraçou de sua casa, ameaçando-nos, impedindo que ela tivesse acesso ao cuidado de saúde. A humanidade também é como os homens que mataram Mestre Moa. A humanidade também é como os tantos que hoje saem dos seus armários para dizer que odeiam gays. A humanidade também é como os que acreditam que uma parte da humanidade merece a tortura e a morte. A humanidade também é como os que batem nas mulheres, como os que marcam sua pele com canivete.

Preciso reencontrar o amor e a esperança dentro de mim. Eu, que tive o privilégio de estar rodeada de benevolência por muito tempo, agora, estando em alguns momentos rodeada por crueldade, preciso encontrar um modo de me lembrar.

Da mulher que fica com fome e sorri ao alimentar os filhos. Daquela maravilha que é uma menina tímida e desajustada, que abre a boca e de repente o ambiente está preenchido por um vozeirão. Da estilista que põe a boca no trombone e denuncia internacionalmente o assassinato de seu filho, torturado, morto covardemente. Do hemofílico destemido que diante de todas as ameaças, com seus desenhos, em traços simples, continua cultivando no povo a esperança.

Me lembro de você, Henfil, mais uma vez. Em tempos tão sombrios, sua pequena graúna me ajuda a seguir, um dia mais.

Caminho mais este passo, e espero estar mais próxima da nova mulher, a que está no futuro, a que vigora num novo mundo, um mundo sem injustiças. A que está além, “além da fome, além da chuva, além dos borrachudos, além da solidão. (...) Está ali, no esforço a mais. Está ali onde a mulher normal começa a dar mais do que a mulher normal. Onde a mulher começa a dar mais que o comum das mulheres. Quando a mulher começa a negar a si mesma... Ali está a mulher nova.”

Caminhamos um dia mais. Porque logo ali, atrás daquela montanha que se ergue diante de nós, além do dia 28 de outubro, lá está a nova mulher. Vamos alcançá-la.

Edição: Joana Tavares