Recentemente, a ombudsman do jornal Folha de S. Paulo fez uma crítica contundente sobre o papel da imprensa na ascensão de um candidato que flerta fortemente com o fascismo. Na reta final dessas conturbadas eleições, com um escândalo fresquinho saindo, é importante que possamos refletir mesmo sobre esse papel.
Não há dúvida de que o “fenômeno” Bolsonaro teve um fortíssimo apoio da mídia em sua construção, o que pode ser apontado por quatro aspectos principais que formam um “modelo” de ação na cobertura diária da imprensa corporativa brasileira:
1. Construção de um inimigo comum: o foco era o PT, e nesse processo se cristaliza o antipetismo. O dissenso e outras perspectivas são excluídos da pauta da mídia, da cobertura diária. As premissas do discurso jornalístico estão bem alinhadas à perspectiva de que existe um inimigo da sociedade brasileira, responsável por todos os problemas que o país enfrenta. Isso se dissemina por uma cobertura enviezada, sem contextualização e com o repertório de corrupção à frente, sempre ligado a esse ator específico (o inimigo). Nesse aspecto, a parceria mídia-judiciário funcionou muito bem, com um timing perfeito para o vazamento de denúncias envolvendo sempre o mesmo ator. Ao lado dessa ação, constrói-se também o Judiciário - representado pela figura eminente e com ares de realeza de Sergio Moro - como instância acima do bem e do mal, portanto, não sujeita a qualquer tipo de questionamento. Para esse modelo, Sergio Moro desfila uma condução moral ilibada, assim, as suas ações, em que se incluem vazamentos sobre investigações, não são passíveis de questionamento.
2. Convergência da mídia: observando-se a cobertura da mídia brasileira no período pós-eleições 2014 até o começo do processo eleitoral deste ano, é possível observar uma convergência impressionante em termos de pauta, enquadramento e viés. Tudo funciona como se houvesse uma grande reunião de pauta comandada por um grande conselho editorial, que congregaria todos os veículos. Não há vozes dissonantes, outros pontos de vista, outros enfoques, abordagem do outro lado. Houve uma impressionante voz única, sempre direcionada para o tema corrupção alinhada a um único grupo.
3. Demonização da política: sob o viés constante da corrupção, a política e os políticos passaram a ser considerados pelo público como “todos iguais”, “nenhum presta”, o que abriu espaço para aventureiros que se descolavam da política tradicional e pareciam representar “o novo”.
4. Estabelecimento de polos: a mídia sempre tratou Bolsonaro como um dos extremos na intensa polarização eleitoral - o outro era, inicialmente, Lula. Tratavam os dois casos como estando no mesmo campo democrático, nos extremos desse campo. Ligavam Lula e o PT à polarização extremista que oferecia riscos à democracia brasileira. Em que pesem críticas e discordâncias, em todos os anos em que esteve no poder e sofrendo todos os ataques que sofreu, o PT portou-se de forma absolutamente respeitosa às instituições, à democracia, aos pactos. Tardiamente, a imprensa, aqui e acolá, reconheceu isso. Foi no mínimo desonesto situar as duas candidaturas (Bolsonaro X Lula, depois Bolsonaro X Haddad) como extremos de um mesmo campo democrático. Novamente: Bolsonaro não podia ter sido tratado como um simples candidato. Essa polarização tinha um objetivo bem claro: construir uma candidatura de centro, preferencialmente com um candidato do PSDB. Por fim, como isso não deu certo, houve a tentativa final de “humanização” do candidato do PSL.
A imprensa brasileira, com a Rede Globo dando as diretrizes, não poderia ter tratado Bolsonaro como um candidato comum. Ele representa retrocesso, homofobia, misoginia, desrespeito, intolerância, e a imprensa estrangeira mostrou isso claramente. No Brasil, a mídia corporativa, em nome do antipetismo, ajudou a criar um monstro. O mea culpa sugerido pela ombudsman da Folha, bem como a matéria minuciosa que revelou o escândalo do “zapgate”, pode ter vindo tarde demais para salvar nossa frágil democracia. A ver.
*Eliara Santana é jornalista e doutoranda em Estudos Linguísticos na PUC Minas/Capes.
Edição: Joana Tavares