Mídia insiste em se furtar a defender a democracia num momento de grande risco
A mídia brasileira não pode ser acusada de ingênua. Menos ainda alegar que se surpreendeu com o estágio alcançado de protofascismo que ronda a sociedade brasileira. Ele cumpriu historicamente esse papel. E, mesmo hoje, ameaçada como vem sendo de retaliações, ainda insiste em relevar ameaças e se furtar a defender a democracia num momento de grande risco social.
O repúdio ao autoritarismo por parte da imprensa veio de jornais de fora do país, inclusive de veículos liberais e mesmo conservadores, que se manifestaram em editoriais transparentes, sem medo das palavras que tanto assustam nossos jornalões: extrema-direita, fascismo, "triste escolha" (como registrou o título do editorial do New York Times). No caso brasileiro, acompanhamos editoriais igualmente fortes, mas de defesa do arbítrio e de miopia deliberada sobre a diferença entre as candidaturas.
Não é um acaso que a utilização das redes sociais encontre um público incapaz de crítica e análise das informações que recebe em seus aparelhos. O brasileiro foi treinado para aceitar fake news durante décadas.
O baixo nível de pluralidade gerou uma onda de pensamento único (se é que se pode chamar de “pensamento”) permeável a simplificações. Os programas jornalísticos vespertinos bateram repetidamente nas teclas da violência e do preconceito, cevando o ódio e incentivando o descrédito aos direitos humanos. Os programas de entretenimento da mesma mídia que comanda o noticiário deturparam o senso de respeito e privacidade, fomentando comportamentos de exibição, inveja e discriminação.
A mídia evangélica ocupou espaço próprio e alugou tempo entre concessionários para pregar sua teocracia reacionária. Mulheres são vendidas como objeto, LGBTIs são tratados com desdém e preconceito, negros e povos indígenas são invisibilizados e apresentados como excedentes da civilização. A pedagogia de exclusão e do achincalhe habita o coração das fake news. Nessa economia simbólica, a tecnologia que tinha tudo para libertar a palavra, vitamina o lixo dos preconceitos.
A legislação brasileira que rege os meios de comunicação permitiu a concentração absurda de propriedade de empresas, como em nenhum país do planeta. Não incentivou a diversidade de linguagens e visões de mundo. Aparelhou o coronelismo eletrônico. As iniciativas populares nunca foram objeto de valorização, nem dos governos, nem da sociedade e até mesmo das organizações progressistas, que só recentemente atentaram para o papel civilizador da comunicação popular.
A universidade, com raras exceções, apenas tardiamente se dirigiu para os estudos sobre as fake news. A criação de institutos, plataformas, grupos de estudos e de monitoramento são recentes e ainda pouco expressivos frente ao aparato de defesa corporativa das próprias empresas. O sistema político ainda não atentou para a necessidade de fomento da comunicação pública.
A regulação do setor, que espera quase 30 anos para sair do papel, já encontra outros desafios, como a relação soberana com os monopólios das redes sociais com seu inegável papel na determinação dos rumos do país.
O neofascismo contemporâneo tem muitos traços da história pregressa das experiências de barbárie: o autoritarismo, o uso da violência, a discriminação de todas as ordens, a divisão da sociedade, o conservadorismo reacionário, o anti-intelectualismo e o extermínio do outro. Quando o horror passa a contar com a mídia, que deveria ser um instrumento de diálogo, há uma ameaça a mais no horizonte.
Essa notícia não vai sair nos jornais. Eles já não servirão para nada.
Edição: Joana Tavares