Artistas mineiros que participavam de exposição no Memorial Minas Vale, em Belo Horizonte, optaram por retirar os trabalhos da instituição após o crime da empresa em Brumadinho. Em carta publicada nesta quarta-feira (30), o grupo afirmou que a ação acontece em solidariedade a todas as vítimas do rompimento da Barragem do Feijão, na sexta (25), e em repúdio à mineradora.
O Memorial Minas Vale, um dos prédios públicos mais importantes da capital mineira, está localizado na Praça da Liberdade e, por meio de Parceria Público-Privada (PPP), tem a Vale como principal patrocinadora. Tal modelo de gestão cultural também foi criticado pelos artistas. "Esse tipo de fomento institucional de artes visuais é dominante em nosso país [...], o que permite que empresas ocupem espaços que deveriam ser de uso amplo e democrático", escreveram na nota.
Eles afirmam, ainda, que a retirada das obras é realizada porque a empresa falha em "compromissos elementares" com a sociedade, como a "garantia de segurança" para o meio ambiente, seus trabalhadores e população.
“A tragédia é irrepresentável”
Em entrevista ao Brasil de Fato MG, o grupo de artistas manifestou o desejo de questionar a forma como a mineração está no dia-a-dia do povo brasileiro. "As empresas não estão presentes só na mina, no interior. A Vale tem o maior museu de BH. É uma indignação notar que uma empresa como essa consegue se apropriar de tantos mecanismos de cultura e iniciativas sem conflito algum", responderam os integrantes.
Sobre encenar de alguma forma a tragédia, os artistas afirmam que “é irrepresentável, não tem o que consiga dar conta. Portanto, optamos pela recusa e pelo silêncio como gesto de luto, não só como artistas, mas como cidadãos".
Leia a nota completa:
Nós, artistas participantes da mostra retrospectiva que está sendo realizada no museu Memorial de Minas Vale, em repúdio à empresa patrocinadora responsável pelo crime ambiental em Brumadinho e em solidariedade a todas as vítimas dessa atrocidade, comunicamos a retirada coletiva das obras em exposição no Memorial Minas Gerais Vale, localizado na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte e da posterior itinerância da mostra em outros espaços culturais mantidos pela Vale no Brasil.
Instalado na antiga sede da Secretaria da Fazenda de Minas Gerais, o edifício público localizado na Praça da Liberdade em Belo Horizonte é ocupado desde 2010 pela Fundação Vale, braço social da empresa. Esse tipo de fomento institucional de artes visuais é dominante em nosso país, que por meio de parcerias público-privadas, permite que empresas ocupem espaços que deveriam ser de uso amplo e democrático, para
mecanismos de publicidade exagerados, utilizando parâmetros abusivos de divulgação de práticas culturais.
A mostra traz os artistas contemplados no edital de exposições do Memorial de Minas Vale, que existe desde 2013. Ao longo dos últimos três anos, vimos que as ações de reparação e sanções do Estado falharam com relação a Bento Rodrigues. Com Brumadinho, acreditamos que não será diferente.
Deste modo, optamos por desvincular completamente nossos trabalhos e nossas pesquisas de um espaço mantido por uma empresa que falha em firmar seus compromissos elementares com a sociedade, como a garantia a segurança de suas operações para o meio ambiente, de seus próprios trabalhadores e da população que convive em proximidade com suas operações.
Entendemos que este gesto não possui efeitos de contribuição para a redução do sofrimento dos atingidos nem para a reparação dos danos causados por esse crime. Mas acreditamos que, neste momento, todas as ações, mesmo que simbólicas, devem ser lançadas para confrontar as narrativas que escondem a real atuação de empresas de mineração como a Vale S.A.
Dizemos não:
à contaminação sem precedentes de rios e mares no curso da lama
ao pó de minério que se acumula sobre casas, ruas e pulmões
à̀ apropriação e ao uso indiscriminado das águas potáveis nas regiões onde estão instaladas as mineradoras
ao vazio de apoios, indenizações e esclarecimentos aos atingidos pelos crimes anteriores
à negligência chocante quanto às medidas preventivas, e protetivas, que poderiam impedir a ocorrência deste terrível crime humano e ambiental
à esquiva da responsabilidade do maior ecocídio já ocorrido em território brasileiro
à forma como são edificadas as políticas culturais de patrocínio que privilegiam a publicidade de empresas privadas em detrimento de políticas públicas de qualidade
ao cinismo programático admitido no mecenato, que utilizam obras e ações artísticas para maquiar atividades corporativas que desrespeitam os direitos básicos dos trabalhadores
à lavagem de dinheiro e à corrupção expressa deliberadamente na relação entre gestores institucionais e a iniciativa privada
à ocupação de prédios públicos por empresas que não respeitam a vida nem o meio ambiente, tampouco contribuem para uma formação diversa de público e sociedade.
Destinado a manter as tradições artísticas e culturais do povo de Minas Gerais, o memorial deveria, a partir de agora, abrigar testemunhos da desertificação de sua paisagem, os vestígios da barbara ação contra as comunidades e priorizar a preservação da memória daqueles que foram afetados pelo soterramento de princípios básicos humanos, os mesmos expostos nas diretrizes prioritárias da Fundação Vale como "a vida em primeiro lugar" e o "cuidado com o planeta".
É necessário esclarecer que iniciativas como o Edital Para Jovens Artistas e outras ações artísticas promovidas no espaço do Memorial Minas Gerais, a Vale S.A., são apenas obrigações da empresa com a sociedade por meio de sua fundação, utilizando o dinheiro de renúncia fiscal para o enriquecimento do fluxo cultural da cidade. Tais recursos são implementos de ações de responsabilidade do Estado, que poderia operar as mesmas verbas sem a utilidade de parcerias com a iniciativa privada.
Gostaríamos de agradecer a toda a equipe de arte, educação e segurança envolvida na realização desta exposição, trabalhadores de tamanha competência, disposição e generosidade, que cuidadosamente dividiram conosco a montagem, produção e divulgação das obras.
Belo Horizonte, 29 de janeiro de 2019 Assinam:
Adriel Martins Visoto
Camila Otto
Carolina Cordeiro
Cleverson Salvaro
Daniella Domingues
Efe Godoy
Estandelau
Gilson Rodrigues
Luísa Horta
Luiza Nobel
Luiz Lemos
Marina RB
Renata Laguardia
Ricardo Burgarelli
Victor Galvão
Walter Gam
Xikão Xikão
Edição: Joana Tavares