A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
Carlos Drummond de Andrade
– Trecho do poema “A máquina do mundo”
O escritor e crítico literário José Miguel Wisnik, em seu livro “Maquinação do mundo” (2018), em que debate a existência de intrínsecas relações entre a obra poética de Carlos Drummond de Andrade e a crítica à exploração minerária, especialmente pela VALE, já afirmava de maneira enfática que a o escritor tocou em uma ferida aberta, a degradação ambiental e da vida afetadas pela mineração.
Essa ferida toma forma à luz das inúmeras violações à segurança laboral praticadas no crime socioambiental de Mariana. A esse respeito, a juíza do trabalho Graça Maria Borges de Freitas, da Vara do Trabalho de Ouro Preto, responsável por julgar as ações indenizatórias movidas pelas famílias dos trabalhadores mortos, afirmava ser imprescindível não esquecer que “o maior desastre ambiental da história do Brasil foi também a tragédia anunciada dos níveis precários da segurança do trabalho em nosso País”.
Nesse sentido, foram verificadas pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Minas Gerais (SRTE-MG) inúmeras falhas na segurança da barragem como dispositivos de monitoramento ausentes por supressão e/ou inoperantes; dispositivo de monitoramento inexistente; não cumprimento de programa de manutenção; adiamento de neutralização; não eliminação de risco conhecido; falta de critérios para correção de inconformidades; ausência de projeto; falta de manutenção preventiva.
Em outras palavras, as mortes de 19 pessoas em Mariana (incluindo 14 trabalhadores e dentre esses 13 terceirizados) não se deram por acidente. Também não ocorreram por acaso os danos irreparáveis às “comunidades rurais e urbanas, inclusive indígenas, empresas, cidades, proprietários de terra ribeirinhos, ao menos um parque estadual, pescadores, turistas, fauna e flora e todos os que dependiam direta ou indiretamente do Rio Doce para sobreviver” (TRT3, 2018).
Esses danos e violações são o resultado da superexploração dos trabalhadores e da destruição ambiental ínsitas da atividade mineradora em sua sanha pelo lucro e que agora, pouco mais de três anos depois do crime de Mariana, dão novamente as caras no crime de Brumadinho. Embora seja cedo para especificar com precisão todos os danos provocados pelo crime da VALE (dona de 50% da SAMARCO, empresa responsável pelo crime de Mariana em 2015) dados preliminares dão conta que o rompimento da barragem da Mina do Feijão, em Brumadinho, ocasionou resultados simplesmente aterradores. São centenas de mortos e desaparecidos, sendo boa parte desses mortos e desaparecidos trabalhadores e terceirizados da própria Vale.
E engana-se quem possa pensar que a lógica do lucro a todo custo praticada pela Vale seja recente na atividade de exploração minerária. É verdade que os últimos 50 anos, os malefícios da indústria mineradora tornaram-se ainda mais perniciosos. Como relatado pelo economista francês François Chesnais, as décadas finais do século XX e as duas primeiras do atual século representaram uma verdadeira crise civilizatória, com a intensa modificação do modelo produtivo vigente. O capitalismo adota um modelo que parece não se preocupar com qualquer demanda outra que não seja a própria lucratividade. A financeirização do capital (criando um capital majoritariamente sem lastro e sem qualquer retorno para a atividade produtiva) e a busca cada vez mais crescente pela competitividade fizeram ressaltar os problemas de um sistema baseado em premissas originariamente excludentes.
Por outro lado, é imperioso ressaltar que o processo de destruição da vida humana e do meio-ambiente revelam base secular. É o que já demonstrava Zola, em fins do século XIX, quando expôs em Germinal as desumanizantes condições laborais dos trabalhadores das minas de carvão do norte da França. É o que também revelava a corrida pelo ouro do período colonial brasileiro, na mesma castigada região das Minas Gerais, palco dos dois crimes sob análise. A escravidão e os maus tratos praticados contra o povo negro refletem seus efeitos até os dias atuais, na massa de cidadãos desumanizados, sem direitos mínimos garantidos e continuamente discriminados por sua cor e condição social.
A realidade é que esta lógica de dilaceração da natureza como um todo (com a vida humana e o meio-ambiente como elementos da natureza) está no cerne da mineração e o que os defensores de um "capitalismo verde/sustentável" tem dificuldade de enxergar é que a mera mudança da legislação ambiental fiscalizatória está longe de representar uma solução significativa para o problema. Uma resposta realmente efetiva envolve a mudança radical do modelo de sociedade vigente, o que envolve não só a alteração de uma lógica de consumo desenfreado, mas de uma falsa noção de "progresso", baseada em um aumento da produtividade e no desenvolvimento ótimo das forças produtivas. Como colocado pelo sociólogo Michael Löwy, deve-se desconstruir o conceito de progresso comumente aplicado, de forma a incluir em sua posição central um desenvolvimento que leve em conta não o tempo do homem, mas uma noção de tempo muito mais expandida, o tempo da natureza.
Daniel de Faria Galvão é advogado e mestrando em Direito do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Edição: Elis Almeida