Eu nunca quis fazer transição capilar. Isso nunca foi um desejo genuíno. Era o que eu costumava repetir pra mim e acreditava até pouco tempo... Hoje, após alguns anos vivendo meu cabelo real, acho que não foi bem assim.
A história é longa. Pega numa ferida pulsante. Uma ferida que é cuidada a cada dia com um amor próprio vacilante e em descoberta. Um amor que eu não sabia que poderia ter até deixar o primeiro cachinho ser livre. Foram 19 anos da minha vida usando química. 19 anos usando todos os produtos de mercado que me prometiam o que eu ansiava: um cabelo de branca. Primeiro a pasta - com aquele cheiro horroroso de ovo podre que ainda me dá arrepios -, depois relaxamento, depois a escova chinesa, japonesa, marroquina e mais qualquer nacionalidade. Isso junto da escova com secador e da prancha, que eram semanais. Nada podia faltar.
Comecei a fazer alisamento aos seis anos porque aos cinco era proibido, a cabeleireira avisou. Minha mãe queria evitar que a pessoa que ela mais ama no mundo sofresse o que o cabelo dela a fez sofrer. Eu era um serzinho, e construí minha personalidade baseada em algo que não era pra eu ser. Eu perseguia um exemplo que não existe e não existirá pra mim. Cresci sem saber quem eu sou.
O dia específico em que resolvi acabar com o alisamento era mais um dia de esperança. Fui ao salão depois de alguns meses de pausa para recuperação da saúde do meu couro cabeludo. Pensei que naquela data ia rolar. Cheguei lá e, de novo, me quebrei. Tive que cortar o cabelo porque ele estava fraco demais. Isso acontecia sempre. Queria ter um cabelo liso e grande, mas ele nunca era liso, ou grande.
Ali, na cadeira do salão, eu enfrentei uma quebra de projeção muito forte: meu cabelo não era liso. Eu não era, e nunca seria, quem eu lutei tanto para ser durante a minha vida inteira. Ali, olhando pro espelho, enquanto a moça mexia no meu cabelo e ele caía e caía, eu sabia que eu não sabia quem eu era.
Voltei pra casa, chorei, lavei o cabelo e deixei secar naturalmente. Eu estava desiludida, não esperava e não queria mais nada, mas era gostoso sentir o cabelo molhado na nuca.
Foram tempos difíceis. Passava por espelhos e por vezes voltava porque não era possível que aquela no reflexo era eu. Tinha certeza que todos os relatos de crescimento e revolução pessoal com a transição eram mentira. Todas as noites, como de praxe, dormia me perguntando o que eu tinha feito para nascer com aquele cabelo.
Mas também notei que não precisava mais dormir de touca. Ou dormir de um lado só e acordar com torcicolo porque eu não podia me mexer e suar. Fui notando que eu era cada vez menos notada. Mas a minha bolsa não andava constantemente pesada porque eu não carregava a chapinha pra todo lugar. Eu podia correr pra pegar o ônibus num dia quente e minha raiz continuava a mesma. Podia dormir fora. Meus cachos estavam tão fragilizados quanto eu, mas um dia, no trabalho, quando me cumprimentaram com um "boa tarde, tudo bem?", eu respondi: "hoje é o primeiro dia da vida que tô sentindo o peso do meu cabelo".
Os meses foram passando. Eu mergulhei na piscina, meu cabelo secou com o sol, meu namorado me disse que eu estava linda. Eu fui a uma festa e suei de dançar. Eu peguei chuva e achei uma delícia. Senti o vento sem medo. Pedi cafuné. Fui percebendo que nesses pequenos momentos em que a gente sente prazer com o corpo, a gente constrói um pouco de amor por si. Só depois que a gente faz bem para nós mesmas é que sente o poder do bem na gente.
Me tornei menos interessante pra um tanto de gente, mas por isso aprendi a depender menos do olhar do outro. Aí, olhei pra mim. Depois de 19 anos, olhei pra mim. Muita crise e muito desespero. Mas os momentos de tristeza começaram a se intercalar com uma pequena potência de percepção de mim mesma. Um dia, achei meu cabelo bonito. Teve outro que achei meu cabelo lindo. Troquei a palavra cacheado por crespo. Eu já não tinha mais tantas falhas e feridas na cabeça. Não temia tanto as fotos. Dei um nome pra situações que traumatizaram e que ficaram sem resposta: racismo. Cruzei uma linha que ninguém cruza porque quer e que, depois de cruzada, muda todo o mundo que você conhecia. Chorei e entendi que esse tipo de choro é constante, infinito, não vai passar.
Comecei a acreditar que as pessoas podiam realmente gostar e se sentirem felizes com o cabelo crespo. Percebi que me relacionava com um homem que não me objetificava, que abraçava cada dor se doendo junto e me amava por quem eu era, mesmo que eu não enxergasse o que ele via.
Um dia, percebi que não era branca, apesar da minha pele ser clara. Em outro, notei que eu não queria ser branca. Percebi que o meu cabelo é também minha identidade e minha falta de conhecimento sobre ela está ligada aos relacionamentos abusivos que tive. Que se colocar em algumas situações é falta de amor. Que se você não sabe o que é se sentir bem, não reconhece o mal. Ainda não é fácil. Todo dia tenho que me perguntar o que eu sou, o que me faz feliz, o que eu quero ou gosto. Eu erro, tropeço, ainda não sei. Me fazer bem segue estranho. Mas em mim, a consciência nasceu.
Achava que nunca tinha escolhido a transição capilar. Que fiz porque ia ficar careca. Só que antes da transição eu comecei a terapia. Na verdade, esse foi meu primeiro gesto de amor comigo mesma. A terapia me fez descobrir um monte de sombras e o meu cabelo. O meu cabelo, meu segundo ato de amor por mim, me abriu as portas da percepção.
O cabelo é um aprendizado. Meus cachos não são como eram no início nem no meio da transição. Acompanhei cada mudança. Ainda levarão muitos anos para se recuperarem e se descobrirem. Crescem sem controle, sem seguir qualquer expectativa, com frizz. Crescem sem saber pra onde, como eu. Nasceram no mesmo momento que eu e me ensinam todo dia que não posso controlar tudo. Meus cachos me ensinam o que é o amor.
Raíssa Lopes é jornalista do Brasil de Fato Minas Gerais.
Edição: Joana Tavares