Teatro, música, artes visuais e outras formas de expressão não cederam ao medo
A onda conservadora que varre o mundo não se propaga no vazio. Ela tem encontrado forte resistência na política institucional, nas organizações militantes e nos movimentos populares. E, fundamentalmente, na cultura. Não é um acaso que o setor seja sempre o primeiro na linha de tiro dos inimigos da liberdade. Extinguir secretarias e ministérios, interromper políticas públicas e censura têm sido formas de agir dos reacionários.
E a cruzada contra a inteligência, a crítica e a criação é ainda maior, chegando às raízes do que entendemos por civilização. Depois de afrontar o campo das artes, persegue seu caminho até a educação e o saber. O anti-intelectualismo arrogante, o desprezo pelo conhecimento e a ocupação do sistema educacional por teorias absurdas e fundamentalismo religioso são ações perigosas e destrutivas.
Os resultados já podem ser vistos, não apenas pela inépcia do Ministério da Educação - o que seria apenas resultado de uma péssima escolha de seu titular - mas pelo projeto que ele representa e que seguirá em frente mesmo sem ele. A operação de desconstrução passou da estrutura da pasta para as políticas setoriais e chega agora aos conteúdos, com promessa de revisar o conhecimento histórico ao sabor dos interesses de ideólogos sem lastro intelectual.
No caso da cultura, além do ataque aos mecanismos de financiamento, à censura moral e política e ao aparelhamento da máquina pública, o governo parece assumir a postura que sempre condenou na esquerda, invertendo os sinais. A tese conservadora é que os progressistas perderam no campo prático e agora precisam ser derrotados na arena simbólica. Não basta cortar a “Rouanet”, é preciso bater chapa no campo da produção, para assim conquistar corações e mentes.
O resultado tem sido uma enxurrada de produções de baixíssimo nível estético e intelectual, que vão de séries de TV e filmes de ação sobre a política brasileira, numa imitação bisonha do padrão norte-americano, a fitas de fundo religioso, tão piegas como inconvincentes. Uma delas levou até mesmo o presidente e sua ministra evangélica e doidivanas a faltar a um expediente de trabalho para assistir a xaropada em primeira mão. Foi, possivelmente, o melhor turno de trabalho dos dois em quase 100 dias.
Para coroar, no dia que marcava os 55 anos do golpe e início da ditadura militar, foi exibido em salas alugadas (ninguém topou programar no circuito comercial) um documentário produzido por uma agência de falsificação histórica – a Brasil Paralelo, que vive mesmo num universo paralelo – que tenta negar os fatos do período por meio de manipulações canhestras. Para os produtores da peça de propaganda, que não merece ter seu nome citado, não houve golpe ou ditadura, mas um movimento da sociedade e uma democracia que usou da força por delegação popular. A tortura foi um detalhe e os militares os salvadores da pátria.
Para isso, o programa se estrutura com imagens de época sem rigor na apresentação, uso de interpretações rasteiras e depoimentos de especialistas desconhecidos do mundo acadêmico sério. Há um tom de lamento permanente dos narradores pela perda da batalha simbólica, o que justificaria o empenho em reescrever a história. Para se ter uma ideia do nível da bagaça, a maior autoridade do filme é Olavo de Carvalho. O que dá o grau de sua desonestidade intelectual. Antes de ser acusado de criticar o que não vi, confesso que assisti, e sofri, as duas horas e cinco minutos do pior documentário da história brasileira.
Palco da política
A cultura resiste no seu campo. Dois dos mais importantes eventos artísticos brasileiros, o Tudo é Verdade e o Festival de Teatro de Curitiba, estão mostrando que a tradição de resiliência dos artistas e pensadores se mantém em alta. No campo do documentário e das artes cênicas, os dois festivais têm na confrontação com o cenário de impasse sua maior inspiração. As produções problematizam nossos tempos sombrios e enviam sinais de luz para os defensores da democracia e da liberdade.
Em Curitiba, além da programação oficial da 28ª edição, o Fringe, uma espécie de mostra livre, comprova que a luta contra todas as formas de opressão e em favor de todas as formas de expressão, continua sendo a chama do teatro brasileiro, nas várias regiões do país. Um panorama da vitalidade dos artistas, em busca de enfrentamento com o momento que nos desumaniza, mas que não cessa de mobilizar as energias de transformação.
De Minas Gerais, na mostra batizada de Feijão Tropeiro, estão representados espetáculos que tratam de temas como racismo, arte e política e LGBTfobia. São montagens de grupos como a Preqaria Cia de Teatro, Companhia Espaço Preto e Plataforma Beijo, entre outras, que juntaram forças para garantir a presença no evento. Há, ao lado da necessidade de levar a palavra questionadora, o papel de agendar sensibilidades próximas para fazer circular uma força criativa diferente da que se encontra habitualmente no mercado do entretenimento.
A mostra de documentários Tudo é Verdade, que se realiza em São Paulo e Rio de Janeiro, chega à 24ª edição com uma pegada universal. Afinal, a tsunami reacionária não é uma triste realidade apenas no Brasil. Com fortíssimo apelo político, os filmes selecionados trazem questões vindas das mais diferentes realidades. Em alguns casos, como do filme “Hungria 2018 – Bastidores da Democracia”, a equipe de produtores não aparece nos créditos, o que mostra o grau de repressão reinante no país que tem sido elogiado por Bolsonaro e seu chanceler. Por falar na dupla, um dos filmes mais esperados da mostra é “A Beira”, sobre os métodos pouco recomendáveis de Steve Bannon, estrategista de Trump e ídolo do filho zero-dois.
Da América do Sul estão presentes filmes sobre direitos humanos no Chile, com “Hoje e não amanhã”, sobre um grupo de mulheres que lutou contra a ditadura no país, e o uruguaio “Liberdade é uma palavra grande”, sobre um palestino que tenta reconstruir a vida no país sul-americano, depois de 13 anos de prisão em Guantánamo.
Do Brasil, destaque para documentário de Paulo Thiago, “Memórias do Grupo Opinião”, com depoimento de João das Neves, ícone do teatro político de resistência à ditadura militar, que morreu no ano passado, com sua força vulcânica em favor da liberdade. Entre as demais produções brasileiras estão A”s constituintes de 88”, sobre a participação feminina na elaboração da Constituição; e “Maria Luiza”, sobre a primeira transexual nas Forças Armadas, que depois de 22 anos de trabalho foi aposentada por invalidez.
Não é só no cinema de documentário e nas artes cênicas que o bom combate vem sendo travado. Literatura, música, artes visuais e outras formas de expressão não cederam ao medo nem à paralisia que tentam impor pelas armas da censura econômica, ideológica e moral. A cultura é o sangue que faz circular a revolta e a busca pela justiça social. E um exemplo para alimentar outras formas de resistência. É preciso dizer não à barbárie.
Edição: Joana Tavares