O presente artigo apresenta uma reflexão acerca do cenário sociopolítico brasileiro sob a perspectiva da Mitologia Política. Seu título escatológico revela o nível de preocupação que me tomou depois que concluí os estudos. Com efeito, os mitos políticos hoje em efervescência no Brasil possuem um conteúdo muito explosivo, sendo, de fato, mitos apocalípticos.
Em geral, os estudos em mitologia política comportam a ideia de que, quando da chamada passagem do teocentrismo ao antropocentrismo, não ocorreu exatamente uma ruptura entre a razão e o mito - ficando este último reservado ao passado religioso - como amplamente propalado. Em outras palavras, as velhas mitologias persistiram na aventura da modernidade e, dado ao caráter poliforme dos mitos, elas não encontraram dificuldade alguma em adotar aspectos racionais, lógicos e comprováveis empiricamente, exigências essas para a sua validação no contexto de nossa era.
O processo de autonomização das esferas da vida social destituiu o centro detentor e propagador da mitologia, a Igreja, de modo que a função de narrar o mito dilui-se nas várias e autônomas esferas da vida social que emergiram naquele momento. Sendo respostas para as angustias e sonhos, próprios da existência humana, os mitos encontraram nas ideologias políticas o meio propício à sua permanência e proliferação. De modo que, como pano de fundo das ideologias políticas modernas, encontra-se, preponderantemente, a narrativa judaico-cristã. Como o mito é também polissêmico, o sentido que cada fato ou personagem de tal narrativa adquire - Deus, Paraíso, Lúcifer, a Árvore do Conhecimento, Adão, Eva, o Pecado, Abraão, Moisés, os Profetas e os falsos, o Messias, Jesus, o Martírio, o Apocalipse, o Juízo Final, a Nova Aliança e a reconquista definitiva da Terra Prometida, ou do Paraíso Perdido, dentre outros – varia de acordo com a orientação política do mitologista, ou ideólogo.
Quando da passagem do teocentrismo ao antropocentrismo, não ocorreu uma ruptura entre a razão e o mito
De modo que, o mito é uma interpretação daquilo que o mitologista, certo ou errado, tomou como sendo um fato energético, forte, dramático, impactante; o mito é um plano, um expediente, um artifício que os humanos adotam para controlar, apreender e manipular a realidade. Podemos dizer que um dado relato é um mito, não pela quantidade de verdade que ele contém, mas pelo fato de que se acredita que ele seja verdadeiro, sobretudo pela forma dramática pela qual ele é apresentado. Sendo que, a linguagem do mito é a linguagem de uma realidade que não é empírica, mas existencial.
Os mitos são guias de ação, mapas de caminhos, códigos de conduta e soluções, já experimentados ou representados, que oferecem aos indivíduos e às sociedades, paradigmas, modelos de identidade e de papéis sociais. Composto por representações coletivas privilegiadas, vinculadas diretamente ao sagrado, o mito funciona socialmente, é eficaz, envolvente, mobilizador, indutor de julgamentos, de avaliações e de ações práticas. Sendo que, é a eficácia do mito, não a sua verdade, que deve ser o critério para pensá-lo.
O apocalipse: a conspiração e o martirológio
De acordo com Norman Rufus Colin Cohn (1981), em sua origem, as profecias apocalípticas eram imagens a que os grupos religiosos, principalmente os Judeus e os Cristãos primitivos, recorriam para se fortificarem e se afirmarem a si mesmos, quando confrontados pela ameaça ou pela realidade da opressão.
Entre os judeus, a crença corrente de que eram o povo escolhido por Deus, Senhor do Universo, fazia-os crer que sua missão na terra era a de iluminar os gentios e a de levar a sua salvação até aos confins da terra. A par desta crença, os judeus vinham sofrendo muitas perseguições e derrotas, sendo convertidos à condição de escravos. A elaboração destas imagens apocalípticas favorecia o aquecimento do nacionalismo, uma vez que previa que, pela sua negligência para com Jeová, o povo eleito deveria passar por todos os tipos de sofrimentos e humilhações, até que, quando o povo estivesse regenerado e reformado, Jeová cessaria a sua vingança e se revelaria como libertador, numa Jerusalém reconstruída sob a égide da paz e da justiça, para onde afluiriam todas as nações.
Mitologias conspiratórias assinalam a existência de um tipo de conspiração, tramada por uma organização do mal
Foi no eclodir da Revolta dos Macabeus, que se registrou a visão, ou o sonho de Daniel, o mais antigo registro apocalíptico da civilização judaica. Nesse sonho, podemos reconhecer o paradigma do que haveria de tornar-se e permanecer a quimera central das mitologias apocalípticas subsequentes: “O mundo é dominado por um poder maligno e tirânico, de uma tendência destruidora sem limites – poder, além disso, imaginado não como simplesmente humano mas demoníaco. A tirania desse poder tornar-se-á cada vez mais ultrajante e o sofrimento das suas vítimas cada vez mais intolerável – até que, de súbito, soará a hora em que os Santos de Deus se levantarão e o derrubarão. Então os próprios Santos e o Povo Eleito, que até ali gemeram sob os pés do opressor, passarão a dominar sobre toda a terra. Este será o culminar da história; o Reino dos Santos não somente ultrapassará em glória todos os reinos anteriores, mas também não terá descendentes. (COHN, 1981, p. 17)
Os mitos apocalípticos guardam em si um potencial explosivo muito intenso e, em geral, vão se encontrar presentes no imaginário social que conduziram às grandes guerras civis e às revoluções. No contexto brasileiro presente, podemos verificar a prevalência de duas variações do mito apocalíptico: a Conspiração e o Martirológio.
A conspiração
“Meu muito obrigado Comandante Villas Bôas. O que nós já conversamos morrerá entre nós, o Sr. é um dos responsáveis por eu estar aqui”, afirmou Bolsonaro logo que tomou posse. O conteúdo apocalíptico das várias mitologias conspiratórias encontra-se no fato de que, elas sempre assinalam a existência de um tipo de conspiração, tramada por uma organização do mal, a fim possibilitar um poder total à uma de força maligna. Na evidência de um possível domínio do mal, as “forças do bem” se articulam, não de modo tão benevolente.
A mais eficaz ficção da propaganda nazista foi a história de uma conspiração mundial judaica. De acordo com Raoul Girardet (1987) o “documento” que comprovaria a existência de um plano judeu para a dominação do mundo “Os Protocolos dos Sábios de Sião” foi uma falsificação, produzida ao final do século XIX por diversos serviços da polícia czarista. Entretanto, tal farsa foi tomada como uma verdade e, principalmente no período entre guerras, obteve tiragens equiparadas à da própria Bíblia. Facilitando assim, a propaganda nazista de transformar a ideia questionável de uma conspiração judaica no principal elemento da realidade alemã.
Para Hannah Arendt (1979), a eficácia desse tipo de propaganda evidencia uma das principais características das massas modernas. Não acreditam em nada visível, nem na realidade de sua própria experiência; não confiam em seus olhos e ouvidos, mas apenas em sua imaginação. De modo que, a propaganda totalitária prospera nesse clima de fuga da realidade para a ficção, da coincidência para a coerência. Segundo a autora, os tais protocolos acabaram por se transformar num manual nazista de como lidar com os judeus.
No Brasil contemporâneo, a velha ficção do perigo da dominação comunista ganhou novos alentos a partir da primeira edição de um seminário internacional promovido em 1990 pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Nele participaram partidos e organizações de esquerda da América Latina e do Caribe com a finalidade de propor alternativas às políticas neoliberais dominantes na região, à época, e para promover a integração latino-americana no âmbito econômico, político e cultural. Esse seminário ficou conhecido como Foro de São Paulo.
Parte do Brasil desdenhou quando o Cabo Daciolo se referiu ao termo URSAL nas eleições de 2018, o mesmo aconteceu na visita recente de Bolsonaro aos Estados Unidos da América (EUA), onde o presidente brasileiro, defronte à autoridades estadunidenses, se referiu ao Foro como uma organização que, segundo ele, "esteve próximo de conquistar o poder em toda a América Latina". Com efeito, de importância quase que mínima no sentido organizativo e muito menos ainda no sentido revolucionário, inclusive incentivando o desarmamento de parte da esquerda latino-americana e a sua incorporação ao recente processo de redemocratização pelo qual passava a região, o Foro de São Paulo se transformou, por meio da narrativa da direita, numa organização perigosa, que preparava, por diversos meios, sempre sombrios, o domínio de toda a América Latina. Entretanto, como anunciamos, é a eficácia do mito, não a sua verdade, que deve ser o critério para pensá-lo. Para constatar, basta fazer uma rápida pesquisa no Google com a expressão Foro de São Paulo. Nela aparecerão inúmeras referências de links que conduzirão a memes, charges, vídeos explicativos sobre o perigo que representa tal organização. Mas, foram as páginas de Olavo de Carvalho (2014) e Brasil Paralelo (2018), principalmente, que contribuíram para dar uma requentada pseudofilosófica e pseudocientífica na narrativa.
Formou-se no Brasil, com a finalidade de combater uma perigosa organização comunista imaginária, uma outra organização, de direita, real e criminosa
Estruturalmente, o mito varia relativamente pouco, sendo comuns versões diferentes de um mesmo mito, ou mitologia. Nesse sentido, a nossa atenção deve voltar-se para a estrutura do mito: “A imagem do complô demoníaco tem como contrapartida a da santa conjuração. Se existe uma sombra ameaçadora, existe também uma sombra tutelar, e os Filhos da Luz escolhem frequentemente a noite para travar o seu combate. Só o complô parece poder frustrar o complô. O segredo, a máscara, o juramento iniciático, a comunidade de cúmplices, a maquinação oculta, em suma tudo o que é denunciado e temido no outro reveste-se de repente, voltado contra este, de um sombrio e todo-poderoso atrativo” (GIRARDET, 1987, p.16).
Ou seja, o verdadeiro conspirador é aquele que alardeia a (suposta) conspiração alheia, “o postulado inicial é simples: o único meio de combater o mal é voltar contra ele as próprias armas de que se serve” (GIRARDET, 1987, p.59). Pela estrutura do mito, podemos deduzir que se formou no Brasil, com a finalidade de combater uma perigosa organização comunista imaginaria, uma outra organização, de direita, real e criminosa, que se articulou e operou nas sombras, cooptando agentes públicos, produzindo e divulgando mentiras pelas redes sociais, criando o clima favorável a que as suas ideias fossem implantadas. É preciso também perceber que, reproduzindo a estrutura do mito, os conspiradores reais acusam os inimigos, os conspiradores imaginários, de fazerem tudo aquilo que eles próprios fazem.
O salvador
“Deus loucas para confundir as sábias; Deus escolheu as coisas fracas para confundir as fortes; Agora, a coisa vai ser mais profunda: Deus escolheu as coisas vis, de pouco valor; as desprezíveis, que podem ser descartadas. As que não são, as que ninguém dá importância, para confundir as que são para que nenhuma carne se glorie diante Dele. É por isso que Deus te escolheu”, afirmou o pastor Silas Malafaia, de seu púlpito, ao lado de Bolsonaro, assim que eleito.
Como um capitão de carreira militar duvidosa, deputado federal do baixo clero, que se expressa mal e, que, em geral, defende teses estapafúrdias e descontextualizadas, que é agressivo nas palavras, destilando por meio delas os mais sórdidos preconceitos, sai de sua quase insignificância e se transforma em um mito, ou seja, deixa a condição de real e é absorvido como narrativa pelo imaginário?
Um salvador sempre se aporta nas situações de desespero, reais ou forjadas. No Brasil, tanto por meio das mídias digitais quanto das tradicionais, forjou-se um clima apocalíptico, de que o país estava caminhando ao comunismo, como Cuba, Venezuela e Bolívia. Por meio de um bullying político abominável, criaram a imagem de uma governante incapaz, de um país quebrado e de uma corrupção generalizada, organizada pelo Partido dos Trabalhadores para se perpetuar no poder. Paralelo à tais mídias e também por meio delas, as pregações evangélicas associavam a corrupção, a homossexualidade, a degeneração moral, o feminismo, a destruição das famílias ao comunismo e aos governos do PT. Movimentos como MBL e Vem prá Rua, se ocuparam de provocar os estridentes panelaços e buzinaços pelas cidade e de espelhar mentiras nas redes sociais.
Um salvador sempre se aporta nas situações de desespero, reais ou forjadas
Enxertando as mídias com delações premiadas, nem sempre comprovadas, mas sempre vazadas em momentos previamente calculados, de modo a surtir os efeitos desejados, incitando ainda mais a opinião pública, a Operação Lava Jato, ao paralisar as grandes empreiteiras nacionais, foi também a responsável por produzir um quadro súbito de desemprego e de desespero. Além de fomentar uma opinião pública ainda mais desfavorável à política, praticamente criminalizando tal atividade, que se coroa com a prisão de Lula e o consequente surgimento do salvador.
Foi nesse contexto, que as mensagens emitidas pelo Capitão encontraram ressonância no imaginário social. Em certa medida, ele se assemelha ao caso do Sr. Antoine Pinay, Primeiro Ministro da França por um curto período, entre 1952 e 1953, que de repente, de acordo com Raoul Girardet (1987), irrompeu no cenário político francês como um salvador. Tal como Bolsonaro, o sr. Antoine Pinay figurava na mentalidade francesa da época como um homem comum, médio, alguém do povo, cândido, verdadeiro, que pensava exatamente aquilo que o cidadão mediano pensava, de modo que, este podia se reconhecer nele.
Entretanto, o mito Bolsonaro parece ter sido forjado para encantar um público específico, o chamado homem-massa. Com a finalidade de manipular, os marqueteiros de Bolsonaro aproximaram a sua imagem, os seus discursos, as suas ideias, as suas crenças, a este perfil de indivíduos, o massa, esse mesmo homem-massa que as redes sociais permitiu que se encontrasse com seus pares.
Leitura considerada obrigatória a qualquer conservador, em A Rebelião das Massas4, de José Ortega y Gasset (2006) expõe o perfil psicológico das massas modernas, aquelas susceptíveis ao discurso, tanto do sindicalismo revolucionário, quanto do fascismo. “Sob as espécies de sindicalismo e fascismo aparece pela primeira vez na Europa um tipo de homem que não quer dar razões nem quer ter razão, mas que, simplesmente, se mostra resolvido a impor suas opiniões. Eis aqui o novo: o direito a não ter razão, a razão da sem-razão”. (ORTEGA Y GASSET, 2006, p.101)
Para o autor, massa não se definia pelas classes sociais, uma vez que o fenômeno perpassaria por todas elas, bem como não se definiria pela aglomeração, uma vez que, ao mesmo tempo, seria um fato psicológico, dado que o homem-massa poderia ser reconhecido individualmente. O autor destaca que, o homem-massa, ao mesmo tempo que desejaria a livre expansão de suas pulsões vitais, portanto, de sua pessoa, revelaria também uma radical ingratidão a tudo o que lhe proporcionou a facilidade de sua existência, esses traços psicológicos comporiam a “psicologia da criança mimada”.
Massa seria todo aquele que se sente "como todo o mundo", e, não se angustiaria por sentir-se igual. Sendo que a massa atropelaria tudo que fosse diferente, egrégio, individual, qualificado e seleto. Quem não pensasse igual a todo o mundo, correria o risco de ser eliminado.
“Não se trata de que o homem-massa seja tolo. Pelo contrário, o atual é mais esperto, tem mais capacidade intelectiva que o de nenhuma outra época. Mas essa capacidade não lhe serve de nada; a rigor, a vaga sensação de possuí-la apenas lhe serve para fechar-se mais em si mesmo e não usá-la. De uma vez para sempre consagra o sortimento de tópicos, prejuízos, ou, simplesmente, vocábulos ocos que o acaso amontoou no seu interior, e com uma audácia que só se explica pela ingenuidade, impô-los-á por toda a parte”. (ORTEGA Y GASSET, 2006, p.99)
De acordo com o autor, “o soldado do dia, diríamos, tem muito de capitão; o exército humano se compõe já de capitães” (ORTEGA Y GASSET, 2006, p. 59) de modo que essa aproximação de Bolsonaro ao perfil desses indivíduos não parece ter sido difícil. E, para além do que o “acaso” já havia realizado, eles se ocuparam, por meio de memes e fakes, de entupir ainda mais a cabeça do homem-massa desses “vocábulos ocos” e preconceitos que lhe fazem parecer pensar.
No fundo, tal como o sr. Antoine Pinay, Bolsonaro representa os anseios por ordem, estabilidade, unidade e um forte apego às formas de vida social que se sentem cada vez mais ameaçadas frente às mudanças correntes, principalmente nos costumes. Entretanto, como estamos no terreno das narrativas, ele deixa a condição de simples executante de uma vontade geral, encarnando-a, em seu sentido religioso mais profundo. O mito Bolsonaro, tanto quanto o mito Antoine Pinay, assemelha-se profundamente ao de Moisés ou ao arquétipo do profeta. “Anunciador dos tempos por vir, ele lê na história aquilo que os outros ainda não veem. Ele próprio conduzido por uma espécie de impulso sagrado, guia seu povo pelos caminhos do futuro. É um olhar inspirado que atravessa a opacidade do presente; uma voz; uma voz, que vem de mais alto ou de mais longe, que revela o que deve ser visto e reconhecido como verdadeiro”. (GIRARDET, 1987, p.78.).
Enquanto uma parte considerável da sociedade segue seu Moisés, outra parcela assistiu abismada a prisão de seu principal líder político
Desesperadas pelo pavor do comunismo, incitadas ao ódio, entorpecidas por mentiras, iludidas por uma grande trama conspiratória, cujo objetivo básico é o de subtrair-lhes os direitos, como de resto os direitos da sociedade brasileira, grande parte da classe média escolarizada deixou-se encantar e foi seduzida pelo mito. Enfim, as elites brasileiras ofereceram ao povo o líder que acham que ele merece, um Capitão.
O martirológio
“Queridos e queridas companheiras. Vocês são o meu grito de liberdade todo dia. Se eu não tivesse feito nada e tivesse construído com vocês essa amizade, já me faz um homem realizado. Por vocês valeu a pena nascer e por vocês valerá a pena morrer”, dizia o bilhete de Lula do dia 6 de abril de 2019.
Enquanto uma parte considerável da sociedade brasileira segue ao seu Moisés, em plena travessia do Mar Vermelho, outra parcela assistiu abismada a prisão de seu principal líder político. Promovida pelo ex-Juiz Sérgio Moro, hoje Ministro da Justiça do candidato eleito e diretamente beneficiado pela prisão de Lula, a prisão do ex-presidente também provoca o imaginário social. Lula poderia ter pedido refúgio, entretanto, optou por permanecer no Brasil e enfrentar a prisão. Ao escolher este caminho, ele fez despertar uma outra mitologia, bem conhecida no meio operário, a do culto aos mártires, que, por sua vez, se inspira em uma outra, mais profunda, o martirológio cristão. As palavras martírio e calvário de Lula vem sendo utilizada em abundância nas mídias sócias e nos jornais de esquerda.
De acordo com Georges Sorel (1992), os cristãos estavam tão convencidos de que o mundo iria ser entregue completamente ao reino do mal, de forma que, qualquer incidente de perseguição transmitia à mitologia do Anticristo algo de seu caráter terrivelmente dramático indicando a guerra travada entre Satanás, que ora ameaçava a dominar o mundo, e Cristo, que viria em seguida trazer a vitória definitiva aos seus eleitos.
Assim, a cisão decorria, ao mesmo tempo, das perseguições e de uma espera febril de uma batalha decisiva. Quando o cristianismo desenvolveu-se o suficiente, a literatura dos apocalipses deixou de ser tão cultivada, ainda que a ideia que constituía o fundo desses continuasse a exercer influência. Os Atos dos mártires foram redigidos de modo a provocar os sentimentos que os apocalipses engendravam. Pode-se dizer que eles os substituíram: às vezes, encontramos consignado na literatura das perseguições, de uma maneira tão clara como nos apocalipses, o horror que os fiéis sentiam pelos ministros de Satanás que os perseguiam. (SOREL, 1992, p. 209)
Além de ver o seu líder preso e humilhado, essa parte da população constata a perda de vários de seus direitos e as riquezas naturais do país serem doadas à potencias estrangeiras. A todo o instante, vê avançar um plano antidemocrático de governo, assim como, começa a sentir na pele a violência do próprio Estado e a que a intensifica nas redes sociais e na vida real.
Ainda inerte, essa outra metade do Brasil, talvez esteja esperando inconscientemente, que a tragédia se conclua com um assassinato (real ou imaginário) de Lula dentro da sede da Polícia Federal em Curitiba, ou outro acontecimento imagético qualquer, para estourar o seu medo e horror acumulados e também derreter-se na loucura.
Tempos mitológicos
“Em dois meses, minha mãe completa 100 anos de vida e diz que nunca viu nada igual ao que está testemunhando hoje. [...] Eu mesmo, em meus quase 80 anos de Brasil, nunca vi nada igual. Eu diria que se trata de uma revolução de ideias, tal a força do que surgiu do cansaço de sermos enganados. [...] De repente, acordamos com a família destroçada, as escolas dominadas, os brasileiros separados por cor e renda, a cultura nacional subjugada, a História transformada. Mas acordamos. Reagimos no voto, 57 milhões, mais alguns milhões que tão descrentes estavam que nem sequer foram votar. [...]. O que minha mãe nunca viu é que antes mesmo de o vitorioso tomar posse, as ideias vencedoras da eleição já se impõem. Policiais que tiram bandidos das ruas já são aplaudidos pela população; juízes se sentem mais confiantes; pregadores do mal já percebem que não são donos das consciências; as pessoas estão perdendo o medo da ditadura do politicamente correto, a sociedade por si vai retomando os caminhos perdidos, com a mesma iniciativa que teve na eleição de outubro, sem tutor, sem protetor, sem condutor. Ela se conduz”, afirmou Alexandre Garcia logo após a vitória de Bolsonaro em 2018.
Em momentos de efervescência, indivíduos e a sociedade vivem o mito com tamanha intensidade que entram na narrativa
Em épocas, por assim dizer, normais, mito e razão convivem (não sem conflito) no imaginário social, entretanto, há épocas as quais os especialistas chamam de período de efervescência do mito. São esses momentos históricos nos quais os indivíduos e a sociedade vivem o mito com tamanha intensidade que, mais que ouvir com atenção a Odisseia, por exemplo, a sociedade entra na narrativa, como se ela embarcasse na nau junto à Ulisses. Ou, no nosso caso, como se parte de nossa sociedade se sentisse em pleno Mar Vermelho, em fuga do Egito, guiados por um novo Moisés e a outra parte revivesse o ato dos mártires.
Sendo um plano de ação, a mitologia da conspiração comunista é o verdadeiro programa do governo Bolsonaro. Ou seja, combater o comunismo e os comunistas, internos e externos, reais ou imaginados é a sua meta. Como são extremistas, o leque daquilo que associam ao comunismo é largo. Não fosse insano, seria cômico supor que alguém que desfrute minimamente de bom senso afirmaria que a Rede Globo seria comunista. Entretanto, as páginas bolsonaristas fazem isso com frequência. E fazem porque, em sua acepção, comunistas são aqueles que pretendem destruir as famílias, que incentivam a homossexualidade, a libertinagem e congêneres, nesse sentido, a Rede Globo, por desenvolver tais temas em sua programação, seria comunista.
Idealizando o período do regime militar como uma Idade de Ouro, o bolsonarismo não hesitará, sob aplausos de uma legião, em atentar contra importantes conquistas nos campos dos direitos civis, políticos e sociais que garantimos por meio da Constituição de 1988, o que já ocorre. Também não hesitará em entregar a potências estrangeiras nosso patrimônio público, nossas riquezas minerais e nossa biodiversidade, uma vez que ideologicamente, o núcleo imaginativo do bolsonarismo está convencido de que o Brasil, por nossa causa, porque somos biologicamente inferiores, é um lixo e que ficaria melhor se nas mãos de terceiros.
A Síndrome de Viralatas. Podemos assistir ao presidente se referindo ao Brasil como um lixo, ao nosso povo como sem vergonha, bem como afirmar que a Amazônia não é mais brasileira e estar negociando a mesma com os EUA.
Além do inexistente “comunismo gaysista bolivariano” do PT, o bolsonarismo elegeu alguns inimigos estratégicos: a educação e os professores; as artes, os artistas e os intelectuais; segmentos da grande mídia, especialmente a Globo e a Folha de SP; os movimentos sindicais e sociais; a CNBB e outros, numa lista que pode sempre aumentar. Todos sendo acusados de faltarem com a verdade, de promoverem ideologias políticas, de gênero ou de raça, de estarem guiados por interesses externos ou ideológicos, de envolvimento com a corrupção, de estarem a serviço do mal, enfim, do comunismo.
A qualquer possibilidade de o Supremo Tribunal Federal (STF) fazer valer a previsão constitucional de garantir ao presidente Lula o direito ao Habeas Corpus, de modo que, o mesmo pudesse defender-se em liberdade até o trânsito em julgado do processo, ou mesmo, a possibilidade de o STF revogar a decisão inconstitucional que permite a prisão em segunda instância, aparecem informações na imprensa sobre reuniões de militares para impedir o fato. Quando não, divulgam-se declarações ameaçadoras de alguns militares, que afirmam que não irão tolerar pacificamente tal atitude. Indicando claramente que o STF encontra-se, no mínimo, “acovardado” com disse o ex-presidente.
Faz-se necessário que a razão volte a ocupar a sua posição de equilíbrio e de mediação, tanto no plano individual quanto no coletivo
O curioso é que, o Regime que se ergue tolera muito bem a liberdade de outros políticos e empresários cúmplices do golpe, assim como é complacente com os “valores irrisórios” do laranjal em torno da família do presidente. Entretanto, quando se fala em garantir ao ex- presidente Lula direitos previstos constitucionalmente, o Regime se manifesta contrário, como se da prisão de Lula, ele extraísse a força para sua própria sobrevivência.
O fato é que, a cada dia que passa, a brutalidade contra o ex-presidente e sua família só aumenta e ganha proporções cada vez maiores. Embora parte da sociedade tenha sido estimulada a crer na legalidade do processo que o condenou, assim como foi estimulada a crer na legalidade do golpe de Estado que derrubou a Dilma, uma outra parte da sociedade, atenta às leis do país, compreendeu bem que tudo não passa de uma manobra política, arquitetada na forma de complô, como aqui exposto. Ressalva-se também, a opinião que formam sobre tal processo juristas, intelectuais e lideranças políticas de todo o mundo.
Nesses tempos mitológicos, nos quais os fins trágicos parecem anunciados, faz-se necessário que a razão volte a ocupar a sua posição de equilíbrio e de mediação, tanto no plano individual quanto no coletivo, de modo a permitir que saíamos deste quadro social de insanidade. Penso que os atores devem mesmo pensar sobre a sua própria responsabilidade no desenvolver dessa trama: a grande mídia, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Ministério Público (MP), o Poder Judiciário, os empresários, os políticos liberais democratas e da esquerda democrática, as Forças Armadas, os líderes religiosos e todos aqueles que, de forma não menos oportunista, contribuíram ao golpe de Estado, à prisão arbitrária de Lula e à vitória de Bolsonaro. Mesmo porque, muitos da lista acima, como já é o caso do STF, entrarão, cedo ou tarde, na lista dos “comunistas” ou “corruptos” a serem defenestrados.
Há esperanças?
Como não há nenhuma garantia de que esses atores irão fazer algum tipo de autocrítica, mesmo porque, não sabemos exatamente precisar o grau de envolvimento de seus membros com a organização paraestatal que armou toda a trama, resta a resistência da própria sociedade. A questão é que, uma boa parcela da classe média ainda não percebeu a dimensão da narrativa que a envolveu e ainda não conseguiu dimensionar os riscos que ela própria corre se o fenômeno persistir. Uma vez que, todo esse segmento social não é exatamente extremista, ele foi tocado pelo extremismo a partir do momento que as suas lideranças o cortejaram, quando apoiaram o golpe contra a democracia e, depois, ao hesitarem a apoiar Haddad no segundo turno das eleições.
Ou seja, quando o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) maquinaram o golpe de Estado com a extrema direita, a parcela da classe média, tradicionalmente eleitora desses partidos, foi exposta ao discurso extremista e acabou sendo tragada por ele. O que faz sentido, à medida que encontramos pessoas letradas recitando, sem passar por nenhum crivo critico, o discurso mitológico da extrema direita e apoiando, sem reservas, medidas de natureza autoritárias, quando não, imbecis apenas.
O MDB, que deveria ser o fiel da balança - ora aliando-se à esquerda democrática, ora aliando-se à direita liberal democrática, mas preservando as bases de democráticas previstas pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988), sua cria - traiu a sua própria história e função. O setor liberal democrático, o PSDB, também abandonou o liberalismo político e os fundamentos democráticos que o orientava e parece estar bem se acomodando aos novos tempos, de liberalismo econômico e de supressão de garantias, bem ao gosto do NOVO. Sem lideranças democráticas, que consigam comunicar com os segmentos médios da sociedade, o extremismo avança.
Urge a rearticulação do centro político democrático, que foi o segmento que mais se desestabilizou diante da ofensiva extremista
Embora o PT tenha mantido a sua força política - uma vez que levou o seu candidato ao segundo turno das eleições e mantido a sua bancada federal grande, sendo o maior partido nesta legislatura, bem como ainda consiga uma boa inserção na sociedade, por meio dos movimentos sociais - é pouco provável que, a curto prazo, o partido recupere a sua capacidade de comunicar com os seguimentos médios que foram seduzidos pelo mito.
Nesse sentido, mediante essa vacância no cenário político nacional, urge a rearticulação do centro político democrático, que foi o segmento que mais se desestabilizou diante à ofensiva extremista e é justamente o que mais faz falta nesse momento. Em outras palavras, é necessário que democratas e liberais democratas, políticos profissionais ou apenas cidadãos, intelectuais ou apenas sóbrios, lideranças sociais e religiosas conscientes de que a radicalização do processo tende a nos levar ao fratricídio, envermelhando de sangue a nossa bandeira, rearticulem-se e voltem a falar para as classes médias, que voltem a disputar e a ocupar o espaço perdido. Que a sua voz seja a defesa intransigente das garantias individuais de liberdade e dos valores democráticos, de modo reforçar a frente contra arroubos autoritários e entreguistas desses novos e perigosos heróis da Pátria.
*Dimas Antonio de Souza é professor de Ciência Política do Instituto de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
Edição: Elis Almeida