Eles amam a família, mas estão dispostos a vender tudo, até a mãe
O que quer Bolsonaro? Transformar a educação num projeto de doutrinação de valores conservadores? Resolver o problema fiscal brasileiro com a destruição da previdência, passando a conta para os trabalhadores? Acabar com o SUS deixando grande parte da população sem cuidado em nome da limpeza étnico-política dos médicos cubanos?
Interromper o programa de habitação popular deslocando os recursos para outras faixas de renda, com juros de mercado? Enfrentar o problema da segurança pública dando ao cidadão a capacidade individual de reação por meio da liberação da posse de armas? Exterminar os mecanismos de incentivo à cultura para atacar artistas e intelectuais de esquerda?
Afrontar as conquistas dos movimentos igualitários e de defesa dos direitos humanos por meio de políticas que valorizem comportamentos conservadores, em nome da proteção da família tradicional? Defender o uso de venenos na agricultura para aumentar o grau de competitividade no mercado internacional? Abandonar os avanços ambientais para favorecer novos negócios?
A resposta para todas essas questões é não. Ou, pelo menos, não totalmente. Esses argumentos, repetidos de forma mecânica e tosca, apenas deslocam a questão dos interesses do mercado para o campo sempre maleável da ideologia. O que o governo quer, em cada uma dessas áreas, é entregar tudo ao mercado. Em outras palavras, transformar direitos em consumo.
Assim, em defesa de bandeiras reacionárias, a entrega do país aos interesses do capital se torna uma operação de salvação da alma nacional. Educação, saúde, habitação, previdência, segurança, cultura, direitos humanos, agricultura e meio ambiente são campos contaminados que precisam ser tratados com o fogo purificador do moralismo e com a imparcial ação do mercado.
Em cada um desses setores, o desmonte empreendido pelo governo, seus agentes e satélites, tem como motivador principal a transformação do papel do Estado de garantidor de direitos para patrono de boas oportunidades de compra e venda. É preciso que tudo que é público se torne privado. A privatização do público é o melhor negócio do mundo: conta com um mercado cativo e trata de necessidades inadiáveis.
Tudo é negócio e ninguém entende melhor nessa área que o bom e velho capitalismo. Se a saúde pública vai mal, nada melhor que fortalecer o comércio no setor, enfraquecendo as políticas públicas. Em lugar do direito à saúde para todos, a entrega do provimento dos serviços ao mercado, incentivando uma transição que permita planos de saúde pobres para pobres e desregulamentação do setor.
O desmonte do SUS e das políticas que dele derivam, como campanhas de saúde pública, Mais Médicos e humanização do atendimento em saúde mental, são instrumentos para reordenar o sistema, em direção a modelos liberais de compra de serviços. Perde-se em equidade, humanismo e eficiência. Não é um acaso que os cursos da área se tornem os mais caros e lucrativos, na lógica do investimento a ser recompensado a posteriori.
Na agricultura, a abertura da porteira às multinacionais de defensivos, muitos deles proibidos em outros países, estabelece um território livre de comércio de venenos. Não se trata de favorecer os negócios de simples agentes químicos, mas de ameaçar a saúde de consumidores e trabalhadores em nome do lucro imediato.
A mesma lógica se estabelece no campo da regulamentação ambiental, compreendida como entrave burocrático para a expansão do agronegócio. Numa ação próxima do surreal, os inimigos do ministério do meio ambiente não são os destruidores da natureza, mas os servidores públicos do setor. As multas é que são o problema, não as infrações. São as regras que contêm exageros, não os crimes contra elas.
Para o governo, meio ambiente se tornou metáfora do atraso. Por isso, não espanta, e até mesmo se justifica, que a Federação das Indústrias de Minas Gerais venha a público, a preço de ouro, comprar espaço publicitário para defender a mineração como agente de desenvolvimento. Mesmo em meio a dois dos maiores crimes ambientais da história. Tudo que é meramente incidental é perdoável.
No caso da previdência, ainda que martelada insistentemente pela mídia corporativa como uma questão de salvação nacional, fica claro a cada rodada o interesse do mercado financeiro em relação ao projeto do governo. Com uma desfaçatez assombrosa, a proposta de reforma dá de uma vez só os dois braços ao setor financeiro: desobriga a contribuição dos empresários e cria o mais que lucrativo mercado privado do pecúlio.
No texto apresentado é fácil separar as colunas de perdas e ganhos. Perdem: os trabalhadores, os pobres, os empregados rurais, os que recebem Benefício de Prestação Continuada. Ganham: os militares, os servidores de determinadas castas do Judiciário e do Legislativo, os empregadores, os bancos e instituições financeiras. Cotas de sacrifícios?
Já em relação à segurança, sem falar no equívoco em combater violência com violência, o incentivo ao mercado de armas não é algo desprezível para a economia. Um dos ramos mais lucrativos do capitalismo industrial, o comércio de armas tem tudo para prosperar no Brasil. Não é demais lembrar que o setor armamentista é ponta na economia americana e tem ajudado outros setores da indústria em crise.
Para completar a mercantilização da segurança, inclua-se o mercado privado formal de empresas militarizadas. Sem falar na falange criminosa dos milicianos, tão próximos do poder, que diversificaram seus negócios e hoje fornecem produtos de consumo, transporte alternativo e até casas construídas à margem da lei e da habitabilidade.
A mais recente investida está se dando no terreno da educação. A redução dos recursos investidos no setor, que já chega a 56% em relação aos governos anteriores. Com o teto de gastos aprovados pelo governo Temer, a tendência é de redução ainda mais drástica nos próximos anos.
O discurso dos cortes na educação tem como justificativa o combate à doutrinação das esquerdas, que teriam se assenhorado do ambiente educacional, sobretudo nas universidades. Uma forma paradoxal de combater o que se julga resultado da ignorância com um incentivo determinado a promover a burrice.
Os dois maiores desafios da educação, no Brasil e no mundo, é aumentar a inclusão e aprimorar a qualidade. Com a transferência dos objetivos do MEC para a perseguição ideológica, a tendência é diminuir a oferta de vagas, sobretudo nos cursos com conteúdo crítico e reflexivo. Perde-se em abrangência e inteligência. Além disso, desestimula-se o ofício do professor, que passa a ser objeto de vigilância e denuncismo histérico, e a pluralidade, que fica refém de uma visão tecnicista, voltada apenas para os interesses do mercado de trabalho.
O que esse cenário evoca, além da inépcia, do atraso e da injustiça social, é exatamente o incentivo ao setor privado de ensino. Depois de atacar os cursos de ciências humanas e filosofia, inviabilizar a pesquisa básica e desestimular a carreira pedagógica, está aberta a estrada desimpedida para os empresários do setor.
Ensino, só de profissões pragmáticas; pesquisa apenas para áreas com retorno por parte da indústria, que passa a ser fiadora das universidades; professores unicamente os dispostos ao papel reprodutivo e alienador. A chamada meritocracia não será um resultado darwinista dos mais aptos, mas uma seleção nem um pouco natural dos mais ricos.
Os reacionários de extrema direita têm o coração marcado pelo autoritarismo, pelo conservadorismo em matéria de costumes, pelo anti-intelectualismo, pelo individualismo e pela ausência quase patológica de sentido de fraternidade. Mas estão também muito próximos de uma vertente ultraliberal em economia, que desconfia de tudo que é público e vê no mercado uma instância quase religiosa e escatológica.
Eles amam a família, mas estão dispostos a vender tudo, até a mãe.
Edição: Elis Almeida