Fazer pouco do conhecimento é prática do atual governo
O presidente Bolsonaro tem se aperfeiçoado na capacidade de gerar atos contra o povo, chegando a formas radicais. Em sua cruzada necropolítica – quando a morte é o resultado esperado para parte da população, considerada descartável por motivos morais ou ideológicos – liberou a posse de armas, propõe ampliar o porte nas ruas, exclui ações assassinas de policiais contra civis do império da lei e anuncia que vai banir parte dos radares das estradas e ampliar a tolerância com quem dirige de forma violenta.
Outra atitude anunciada pelo presidente, com a falta de sensibilidade humana de sempre - manifestada com a impaciência arrogante de quem ataca por não ter argumentos racionais - não mira os bandidos em favor das “pessoas de bem”. Nem mesmo o “cidadão livre”, que se sente tolhido de seu egoísmo frente à burocracia que quer retirar a autonomia para se comportar de forma perigosa em comunidade. Bolsonaro desceu à escala máxima da inconsequência. O foco agora são as crianças. Sem medo de usar as palavras exatas: trata-se de infanticídio programado.
O presidente defende que a desobediência do transporte dos pequenos de forma segura, nas conhecidas cadeirinhas, não gere outra penalidade que não a mera advertência. Se isso não é um incentivo a acidentes graves é, no mínimo, uma prova de ignorância acerca dos dados registrados por estatísticas médicas e de segurança em todo o mundo. O ataque à indústria das multas (uma das obsessões do mandatário, ao lado do órgão sexual masculino) é uma operação de autodefesa de um contraventor contumaz. Em sexo e trânsito, a fixação psíquica de Bolsonaro está aquém das metáforas.
A mais recente estratégia nesse sentido foi sancionada na quinta-feira, dia 6, alterando as diretrizes nacionais para as políticas públicas sobre drogas. A nova lei é resultado de um projeto do atual ministro da cidadania, Osmar Terra, apresentado em 2013, quando era deputado federal. Não é um acaso o patrocínio de Terra na matéria. O ministro já demonstrou sua ignorância sobre o tema, ao desqualificar a mais importante pesquisa sobre o uso de drogas já feita no Brasil. Não se trata de uma discordância com resultados científicos, o que já seria absurdo, mas de uma operação articulada para ancorar a sanção presidencial à nova Lei de Drogas.
Atenção aos números: 500 pesquisadores da Fiocruz, uma das mais importantes instituições de pesquisa em saúde pública no mundo, ouviram mais de 16 mil pessoas durante quatro anos. O resultado constatou a gravidade da questão do uso de drogas no país, mas descartou a existência de uma epidemia. O conhecimento científico, como é de se esperar, deveria servir de base para se traçar políticas efetivas para a questão. No entanto, depois de passear por uma Copacabana vazia na tarde fria de outono, Terra, em sua fissura ideológica, vomitou que a pesquisa estava errada e, do alto do seu achismo terraplanista cravou a existência de uma epidemia. O passo seguinte foi interromper o trabalho dos pesquisadores e inviabilizar o acesso aos dados.
Fazer pouco do conhecimento é prática do atual governo. Desconhecer os fatos em nome de verdades reveladas ou da pura ignorância tem sido o método. Defensor da mudança de política sobre drogas, que altera a lei de 2006 e outras 12 normas até então em vigor, o ministro precisava destruir a pesquisa para colocar no lugar suas convicções punitivas e persecutórias. E é disso que se trata. Sai a política humanitária de prevenção de danos e atenção ao sujeito, para entrar no lugar a prática de isolamento e o dedo acusador apontado para o usuário. O que é considerado em todo mundo um problema de saúde pública se torna no Brasil neofascista uma questão de polícia e encarceramento forçado.
A mais drástica mudança, que se soma ao ataque a outras ações humanistas no campo da saúde mental, é a volta da internação compulsória. Mesmo dependente de solicitação da família e chancela de um médico, é um recuo em relação ao que era estabelecido até então pelas normas do setor. A internação não voluntária era prevista, mas havia um rigor maior em sua decretação (segurança da pessoa ou de terceiros), tendo em vista que o principal foco era o sujeito. Compreendida como situação causada por fatores de várias ordens – sociais, econômicas, psicológicas e familiares –, o consumo de drogas precisa ser enfrentado tendo em vista sua complexidade.
O consenso que as políticas de abstinência e internação forçada não levam adiante o tratamento é outra realidade científica que foi traduzida no jargão religioso e salvacionista das políticas restritivas como falta de firmeza ou danação. Na prática, a aliança dos defensores do método do encarceramento compulsório e abandono ao inferno das internações sem terapêutica sempre foi com setores menos tolerantes da sociedade. O egoísmo age de duas maneiras no campo político: defende privilégios para si e para os próximos, por um lado, e, por outro, afasta os problemas que convocam ações solidárias como fruto de fracasso pessoal.
Assim, o sujeito envolvido com drogas era apresentado à sociedade como um problema causado por ele mesmo e por suas fraquezas. Com isso, a única solução viável era seu afastamento do convívio social, não a tentativa de recuperá-lo ou diminuir seu sofrimento. Não é compaixão, mas anátema. Não há tratamento, mas isolamento. Não se visa a recuperação do indivíduo com trabalho terapêutico, mas a higienização social das ruas. No horizonte de tempo, o que começa como asilamento se completa como extermínio longe dos olhos da sociedade. E valorização imobiliária das regiões faxinadas com uso da força.
Há, no entanto, um lado que parece estar sendo escondido na mudança da lei. Além de desumana, ineficaz, preconceituosa, ideológica, sem fundamento científico e socialmente injusta, o novo regulamento das drogas cria um lucrativo mercado do sofrimento humano. Além do retorno das valorizadas autorizações para internação hospitalar para a rede privada por até 90 dias, com recursos públicos, as chamadas comunidades terapêuticas ganham força inusitada. Embora assim chamadas, elas não são nem comunidades nem terapêuticas. São, na verdade, aparelhos de encarceramento, doutrinação e isolamento.
Não há nada de comunitário (as pessoas são zumbis isolados em seu sofrimento) nem de terapêutico (deixa-se que natureza e a culpa operem seu trabalho saneador). Na sua maioria ligadas às igrejas envangélicas, base do bolsonarismo-raiz, as comunidades nunca foram consideradas pelos especialistas do setor e mesmo pelo Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) como um ambiente de tratamento. Não são instituições de saúde, não estão passíveis das regras do setor sanitário e na maior parte das vezes estão na mão de pessoas sem formação específica.
Essas comunidades que pululam pelo país se autodenominam filantrópicas, para escapar da fiscalização, e têm como método o trio formado por encarceramento, abstinência e proselitismo religioso. Nesses depósitos de gente, droga é coisa do diabo. E é como tal que a pessoa é tratada. Sem falar de denúncias de maus tratos, trabalho forçado e extorsão de bens da família. Apesar de se qualificarem como não lucrativas, as comunidades vivem de convênios e repasses públicos, quase sempre com pressão das bases evangélicas nos três níveis de governo. Dá uma grana.
É exatamente no universo da droga que o necropoder tem se capacitado para fortalecer suas bases: a proibição que amplia a violência e aumenta o preço do produto; a defesa do armamento da população como política de segurança, com valorização do setor industrial respectivo; o fortalecimento da demanda por proteção privada por parte das milícias.
E, agora, para completar, a ampliação da rede de comunidades terapêuticas para fornecimento de consumidores cativos da salvação, pegos a laço. O traficante ganha com a droga; o governo e seus satélites com a abstinência. Como se vê, os evangélicos de extrema direita são o capeta em ideologia e o diabo em matéria de negócios.
Edição: Elis Almeida