Já fui chamada de Durkheimiana, de Panafricanista, apontada como fazer parte desta ou daquela tendência. No entanto, me identifico como uma mulher da tradição de matriz africana Bantu que escolheu como profissão a medicina. Na tradição, sou uma neófita de 15 anos com responsabilidade de 30. Na vida, uma militante. Ou seja, na luta antirracista pela democracia e igualdade de direitos em todos os sentidos, eu não caminho sozinha.
Este artigo tem como temática a violência que as Unidades Territoriais Tradicionais de Matriz Africana (UTTs) têm enfrentado em todo território brasileiro.
As UTTs são importante elo entre os povos da Diáspora Africana e os povos ascendentes do continente-mãe. Também conhecidas como roça, terreira, terreiro, ilê, barracão, manso, santeria, etc, as UTT são diversas e distintas entre si, mas têm em comum a capacidade de reunirem em seus territórios os elementos culturais oriundos dos povos africanos, garantindo a sobrevivência das culturas ancestrais na Diáspora através da convivência em comunidade, manutenção dos idiomas, soberania alimentar, vivência e exaltação das culturas e prática da espiritualidade e dos ritos sagrados dos Povos Tradicionais de Matriz Africana.
Aqui, o termo “povo” é utilizado em contraposição ao termo “população”, uma vez que não denota a possibilidade de transição e de contingência muitas vezes ligada aos ganhos e perdas de um Estado-nação, mas, sim, caracteriza um segmento nacional com identidade e organização próprias, cosmovisão especifica e relação espacial com a terra habitada. Assim, a afirmação como Povos Tradicionais de Matriz Africana é uma posição política de enfrentamento ao Estado anteriormente escravizador e hoje genocida.
Na medicina, falamos que apesar de vários sinais e sintomas distintos a doença é uma só. Os ataques às UTTs não são atos isolados ou desconformes de outros atos de violência que acontecem no país, mas são, isso sim, mais um sinal de que é necessária atenção nacional à pauta, esforços governamentais e construção de pontes internacionais para a solução deste problema disseminado que a maioria insiste em não ver como parte do todo.
Um Estado e uma sociedade com base racista, fortalecidos a partir do classicismo e com tendências fascistas, têm como estratégia de controle e distração a criação de um inimigo comum que precisa ser combatido para o sucesso do projeto de expansão do capital e de setorização de direitos. Para tal, de um lado a legitimidade da força por parte dos serviços públicos de segurança e, de outro, a negligência e omissão em relação aos atos de violência praticados por indivíduos e organizações servem ao objetivo de desmontar e enfraquecer as unidades identitárias não hegemônicas, em especial os povos negros, indígenas, pobres, mulheres, homossexuais, transgêneros e etc.
Nessa lógica, qualquer coletivização que fuja aos padrões do poder hegemônico – a saber: de cosmovisão euro-centrada, branca/caucasiana, masculina, heterossexual, judaico-cristã e capitalista – é entendida como ameaça à saúde do Estado-nação.
Como eixo da violência simbólica, atualmente, observamos a perseguição aos direitos sociais e à ascensão experimentada por parte da classe baixa nos últimas duas décadas como meio à extinção das ditas ameaças, o que resulta no fim de categorias de trabalhadores, na precarizações dos direitos e condições trabalhistas, em terceirizações em massa, na MEIzação dos profissionais para contratação de prestadores de serviços de forma inadequada nas empresas privadas, no fim dos sindicatos e clubes de aposentados, e por aí vai.
Como eixo da violência física, o poder das armas de fogo unifica os seres de “bem” e, perigosamente, compele a muitos a seguirem não as normas jurídicas que garantem igualdade de condições entre todos os seres humanos, mas, sim, a seguirem aqueles que se dizem eleitos para representarem o Poder Maior que está acima do poder político: Deus.
Sob a nova égide engendrada na política brasileira de que o poder emana de Deus e não do povo, e de que a melhora social se dá através da uniformização de credos ideológicos, todos que O seguem estão a serviço do mesmo mandante e devem, mesmo que a despeito das normas jurídicas, fazer sua parte para a melhora da “nação brasileira”.
Entretanto, há os que insistem em manterem e enaltecerem suas diferenças, seus credos distintos, suas origens, cores e saberes diversos e resistentemente reúnem-se ali, incomodando à hegemonia.
Muito mais do que o traficante evangélico, nossos perseguidores estão entre gestores estatais que nos excluem, legisladores que nos clandestinizam, latifundiários que nos expulsam, conglomerados alimentícios que tentam nos condicionar a alimentações exógenas, indústrias farmacêuticas que furtam nossos saberes tradicionais e os revertem em medicamentos de alto custo.
O Brasil é um Estado-nação que, a despeito de possuir inúmeras nações e povos de origens distintas, não sabe conviver com as diferenças e enaltece algumas em detrimento de outras. Um país não entende todos os seus entes como equânimes, que vê sua soberania ameaçada pela resiliência dos territórios tradicionais. Esses territórios respondem à natureza, têm organização e autoridades tradicionais e carismáticas próprias, possuem idiomas distintos do oficial, comem de formas diferentes e, por tudo isso, emanam poder e capital social, político e econômico com capacidade de articulação internacional.
O culto ao sagrado é apenas um dos inúmeros aspectos dos povos de matriz africana. Para além do racismo, o que estes povos enfrentam é terrorismo, é genocídio.
Bum! Salve os caboclos de julho: eles foram de aço nos anos de chumbo e não deixaram de ser sagrados!
Kota - Cargo hierárquico do povo tradicional de matriz africana Bantu
Mulanji - nome tradicional de Regina Nogueira - médica intensivista pediátrica e coordenadora nacional do Fonsanpotma (Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana).
Edição: Joana Tavares