Minas Gerais

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Zema quer cassar o povo

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O governador, como comerciante de origem e formação, marcado pela lógica do consumo tem alergia ideológica de tudo que é público
O governador, como comerciante de origem e formação, marcado pela lógica do consumo tem alergia ideológica de tudo que é público - Renato Cobucci / Imprensa MG
O governador de Minas Gerais desponta para irrelevância

Não há limite para a desfaçatez do governador de Minas Gerais, Romeu Zema. Depois de cortar mais de 81 mil vagas de tempo integral nas escolas públicas estaduais e sofrer uma merecida repulsa dos alunos, pais, professores, deputados e movimentos sociais, resolveu divulgar essa semana que está reabrindo cerca de 30 mil vagas. A secretária de educação do estado, Júlia Sant’Anna, fez o anúncio como se apresentasse um avanço e não um recuo ainda incompleto no ato anticivilizatório que perpetrou. Retroagiu em função da revolta, mas não teve a sabedoria de aprender com o erro.

Para a secretária, trata-se agora de uma nova modalidade de ensino integral, com maior qualidade, que será levado a mais escolas ainda este ano, embora não chegue perto do número de cortes feitos. No entanto, em seu anúncio pela imprensa e na página do governo, ela fez questão de destacar que vem fazendo um trabalho sério de “reorganização dos processos e organização financeira”. Bem sintonizada com a retórica do chefe, obcecado com cortes e fluxo de caixa, a carioca Júlia Sant’Anna, sem bairrismo - mas com orgulho histórico -, parece não conhecer a riquíssima trajetória da educação em Minas. Nem a força do setor.

Durante toda a crise em torno da medida, o governo exerceu com a insensibilidade de sempre seu desprezo pelo debate democrático e pelo diálogo com os profissionais da área e com a sociedade. Escorado como sempre no discurso repetido da herança maldita recebida, todas as áreas da administração pública parecem condenadas a ter como horizonte apenas a questão fiscal. Em nome do equilíbrio das contas públicas, vale tudo, até tirar jovens da escola. Não é possível descer mais.

O impacto na vida dos alunos e de suas famílias é imediato. São jovens que perdem referência, conteúdos formais e convivência em ambiente saudável. Milhares de mães não têm com quem deixar os filhos e com isso tiveram suas rotinas destroçadas, muitas delas parando de trabalhar e perdendo em qualidade de vida. Não se trata de uma situação para a qual puderam se preparar, mas uma decisão sem recurso, dada como fato consumado.

Ao comemorar o recuo insuficiente como uma conquista da qualidade sobre a quantidade, Zema e sua secretária deram mais uma vez prova de que não entendem de gente e de vida real. Na cartilha da secretária, a melhoria (ainda que passível de discussões, afinal não foi apresentada com transparência) de um lado só é possível com o prejuízo do outro, ainda que transitório. O que ela parece não entender é que a vida não é transitória nem segue cronogramas de reorganização de processos: 50 mil jovens já estão fora da escola integral a qual estavam vinculados, inclusive afetivamente.

Há um falso dilema quando a questão é apresentada como sendo uma escolha entre uma escola boa para alguns, viável financeiramente, e uma escola boa para todos, mas inviável em termos de recursos. As ideias de universalização e equidade são miragens para quem enxerga o mundo com cabeça de planilha. A opção de cortes na educação não se coloca num governo responsável, independentemente da dimensão da crise.

O divórcio com o povo, marca da gestão Zema, registrou novo tento com o anúncio do governador de que encaminhará para a Assembleia Legislativa uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para limar a exigência de referendo para privatização de estatais. Na mira, também sob a retórica da recuperação fiscal, a venda da Cemig, Copasa e Codemig, que fazem parte do pacote de sonho de consumo do mercado. De olho no plano de recuperação apresentado pela União, o governador coloca em ação seu orgulhoso DNA privatista. A fome e a vontade de comer.

O fato de a necessidade de consulta ao cidadão para a venda das estatais constar na Constituição é algo cristalino e imperativo: as empresas não são do governo, são do povo. E por isso cabe a ele, que as financiou desde a origem, dar a destinação mais conveniente ao seu papel no Estado, não numa administração marcada por obsessões fiscalistas e ultraliberais. O referendo é o instrumento incontornável e cabe à Assembleia manter sua obrigatoriedade.

As empresas estatais existem para gerar desenvolvimento, não para equilibrar o caixa. O governo tem em suas mãos uma oportunidade dada pelas urnas: geri-las com eficiência, inclusive com modelos de gestão que confrontem com administrações anteriores. É para isso que serve uma eleição, para que o cidadão escolha, entre outras coisas, como quer ver seu patrimônio gerido, ampliado socialmente com investimentos responsáveis e traduzido em serviços de qualidade para todos. Fora desse quadro, usurpa de sua competência.

O governador, como comerciante de origem e formação, marcado pela lógica do consumo, não gosta do setor público, dos funcionários púbicos, das políticas públicas. Tem alergia ideológica de tudo que é público. No mundo do comércio se movimentam consumidores isolados, não cidadãos.

No entanto, no caso da privatização de estatais estratégicas, o governo de Minas Gerais parece atirar contra o próprio patrimônio em nome de dois equívocos típicos de seu meio empresarial: o imediatismo dos ganhos que se dissipam sem deixar nada no lugar e o desconhecimento da gestão pública, não necessariamente voltada para o lucro pontual, mas para o desenvolvimento no sentido amplo e solidário.

O mais grave, no descaso com a educação e na privatização selvagem e vertical pretendida, é sua atitude antipopular e, no limite, antidemocrática. O governo não tem quadros experientes na área pública, não tem habilidade de negociação com o campo político, é surdo à voz da sociedade organizada e, mesmo eleito com maioria expressiva, não transformou a confiança das urnas em apoio popular. Autocentrado e sem a convivência saudável com a divergência, atitudes típicas do patronato conservador, vai cimentando uma trajetória de isolamento.

Agora chegou ao limite de querer mudar a Constituição do Estado. Zema quer cassar o povo. A história mostra, sem exceção, que em casos como esse costuma ocorrer o inverso. O governador de Minas desponta para irrelevância por características próprias: promete e não cumpre, não respeita a política formal nem a cidadania organizada, não tem dimensão da tarefa para a qual se propôs. Vai passar quatro anos lamentando os prejuízos do passado em vez de olhar para a frente. Terá a vida inteira para lamentar por seus próprios atos e omissões.

Edição: Elis Almeida