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Vale do Jequitinhonha, uma terra em desenvolvimento

Pesquisadores afirmam que indicadores oficiais demonstram desigualdade, mas não captam a riqueza produzida na região

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
Há valores não monetários no Vale do Jequitinhonha que enriquecem a economia local, a relação comercial entre regiões e a qualidade de vida
Há valores não monetários no Vale do Jequitinhonha que enriquecem a economia local, a relação comercial entre regiões e a qualidade de vida - Foto: Maurício Gomes/Idene

Variedades de peixes, frutos diversos, rica vegetação, terras férteis, música de reconhecimento internacional, cultura tradicional, e um povo forte, criativo e trabalhador. Esse é o Vale do Jequitinhonha, uma região de desenvolvimento crescente.

A afirmação pode parecer controversa, já que o Vale é conhecido pela sua pobreza e falta de investimentos, mas diversos estudos e estudiosos apontam o contrário. “Historicamente o desenvolvimento tem a ver com trabalho assalariado, renda por habitante, melhoria no padrão de vida, acumulação de capital, investimento produtivo, consumo. Ou seja, é um fenômeno do capitalismo”, explica Davidson Afonso de Ramos, doutor em Sociologia, professor da Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e pesquisador do Projeto Veredas Sol e Lares. Ele defende que a ideia de desenvolvimento está ligada, de forma geral, ao crescimento, que pode ser medido por indicadores como PIB, IDH e outros.

O Vale do Jequitinhonha é tido como região empobrecida se olhado por estes indicadores oficias. O PIB, por exemplo, representa apenas 1,4% do estado de Minas Gerais, segundo dados do IBGE de 2014. A antropóloga e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Flávia Maria Galizoni afirma que diversas relações econômicas do Vale do Jequitinhonha não são consideradas para a elaboração deste indicador. 

“Essa visão do ‘Vale da Miséria’ é uma perspectiva, mas é feita a partir de situações que usam índices e medições que dizem muito pouco sobre a realidade local, que é principalmente de agricultura familiar e pesca”, afirma.

Para ela, há desenvolvimento no Vale e potencial para crescer ainda mais. Segundo a pesquisadora, há valores não monetários produzidos no Vale do Jequitinhonha que enriquecem a economia local, a relação comercial entre regiões e a qualidade de vida da população, como as feiras livres.

Produção de alimentos e indústria doméstica

Foto: Maurício Gomes/Idene

Um estudo realizado por Flávia em parceira com o também professor da UFMG Eduardo Magalhães Ribeiro aponta que no Jequitinhonha as feiras respondem por parte importante do abastecimento com produtos locais, que atende entre 16,70% e 44,22% da população total.

O que é chamado pelos especialistas de indústria doméstica no Jequitinhonha fortalece uma rede de comércio na região que fica de fora dos índices oficias de economia, como os intermediários, a venda direta ao consumidor e o autoconsumo.

O estudo, intitulado “Programas sociais, mudanças e condições de vida na agricultura familiar do Vale do Jequitinhonha Mineiro”, aponta que entre as famílias de produtores rurais, de 45% e 81% se alimentam do que plantam, ou seja, praticam o autoconsumo. Se fosse definido o preço desses alimentos produzidos e consumidos pela própria família, isso corresponderia a entre 26% e 40% de um salário mínimo mensal.

“Quando em 2002 se falava em garantir o direito a todo brasileiro de ter no mínimo três refeições por dia, a população do Jequitinhonha já comia quatro vezes ao dia, porque produz seu próprio alimento. Isso faz do Vale uma região rica”, conclui a antropóloga.

História de exploração e resistência


Foto: Duarth Fernandes/Arquivo CAV
Geralda Chaves Soares, conhecida como Gera, é filha do Vale do Jequitinhonha e pedagoga. Ela é ativista da causa indígena e atua na região há mais de 20 anos. Gera afirma que é impossível entender o Vale do Jequitinhonha sem olhar para a história de perseguição e exploração na região.

Ela conta que a região era povoada por indígenas de diversas etnias, com vasto conhecimento do território e suas riquezas. Mas a colonização do Brasil trouxe a guerra e a destruição. “Ao longo de toda a nossa história, o povo do Vale do Jequitinhonha era indígena, donos das terras, altivos e autônomos. Depois se tornaram inimigos do Estado, passaram ser caçados e foram feitos escravos. Tiverem que se esconder na mata e se tornaram posseiros, e em seguida moradores das periferias das fazendas”, destaca a pedagoga.

Gera sustenta que a história de luta do povo de Jequitinhonha se estende até os dias de hoje, na resistência em comunidades quilombolas, indígenas, movimentos sociais e organizações do povo. “É uma população atingida pelo discurso do progresso”, resume.

Assim como Geralda, o professor Mateus de Moares Servilha, educador e escritor, aponta a necessidade de se entender a história para falar de desenvolvimento no Jequitinhonha. Ele explica que a ideia de desenvolvimento regional tem origem no fim da década de 1950, com a criação da Sudam, Sudene, IBGE e outros órgãos.

Eles tinham o papel realizar pesquisas e criar índices nos estados brasileiros, apontando a melhor forma de exploração das regiões para o que era chamado de desenvolvimento no país. A partir dos estudos, se pensava qual papel a área iria cumprir na divisão da produção nacional. Nasce aí a “vocação do Vale do Jequitinhonha”, como justificativa para os muitos empreendimentos de exploração da terra implantados desde então.

“De lá pra cá temos o primeiro grande projeto de desenvolvimento do Jequitinhonha, apoiado pela Codevale com isenção fiscal, que foi a monocultura de eucalipto. O projeto chega com o discurso do ‘Vale da Miséria’, que vai gerar a salvação do povo do Vale. Suas consequências são muito graves, pois é um projeto que amplia significativamente a concentração de terras”, denuncia Mateus. Ele lembra que esse foi só o início dos muitos empreendimentos que estão no Vale atualmente, como a exploração de minérios diversos, criação de bovinos, e pequenas e grandes hidrelétricas.

Desenvolvimento: só é possível com o povo

“Aqui ninguém foi consultado se queria eucalipto, veio de cima pra baixo. Se estamos tendo problemas hoje com as águas e outras questões é por causa desse tal desenvolvimento. Devia era ter mais envolvimento, o povo poder dizer a sua palavra”, indigna-se Geralda.

Para os especialistas entrevistados, a construção do plano de desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha deve ser elaborada pelos próprios moradores do local, buscando-se compreender suas potencialidades e as melhores formas de realizá-las.

“Existem cadeias produtivas e outras alternativas possíveis que não esses megaprojetos desenvolvimentistas, que empregam pouco e ainda trazem impactos negativos do ponto de vista ambiental e social. Eles trazem mais danos do que desenvolvimento. O projeto Veredas Sol e Lares, por exemplo, não se baseia nos planos clássicos de desenvolvimento, pois busca uma construção de baixo pra cima, com participação popular em todos os pontos”, exemplifica Davidson.

As grandes potencialidades do Vale do Jequitinhonha são também exaltadas pela antropóloga Flávia Maria. “Há uma perspectiva que vê o Jequitinhonha como região de desigualdade, mas isso poderia ser visto como potências de desenvolvimento. Dentro da diversidade do Vale, vemos um conjunto de comunidades que constroem iniciativas muito ricas”, completa.

Bons exemplo de uma destas iniciativas é o Programa de Aquisição de Alimentos, gerido pela Conab/Mapa, que compra de camponeses para distribuir entre organizações sociais da região, além do programa Um Milhão de Cisternas, gerido pela rede de organizações da sociedade civil Articulação do Semiárido (ASA), que descentraliza a oferta de água por meio de cisternas construídas com força de trabalho das próprias localidades.

A ativista Geralda destaca as inúmeras experiências de resistências contra os grandes projetos no Vale do Jequitinhonha e também experiências de produção, como a tecelagem, sementes crioulas, agroecologia. “Pra mim, pobreza é outra coisa. Nós somos ricos, temos cultura, um conhecimento enorme das nossas águas e nossas terras, temos uma herança cultural, tradições religiosas. Isso é vida” conclui.

Veredas

O projeto Veredas Sol e Lares, em andamento na região há mais de um ano, prevê a construção de uma usina fotovoltaica em Grão Mogol que deve ser gerida pela população do Vale do Jequitinhonha. O Veredas chega à região com a proposta de construir um plano de desenvolvimento, mas desta vez, em conjunto com a população, buscando a potencialidade do Vale e suas múltiplas formas de realização. Conheça mais aqui.

Edição: Joana Tavares