Mais um empreendimento de mineração poderá tomar uma grande parte de Minas Gerais. O projeto é da empresa de capital chinês Sul Americana de Metais (SAM), que tenta implementar o negócio na região do Vale das Cancelas, Norte do estado, desde 2010.
Anteriormente, o plano era conhecido como Projeto Vale do Rio Pardo e foi negado pelo Ibama por inviabilidade ambiental. Este projeto previa a construção de um complexo minerário (com barragens de rejeito e de água, mina, usina de tratamento de minério, etc.) e um mineroduto de 482 km que transportaria minério por 20 municípios até chegar em Ilhéus, na Bahia, de onde o produto seguiria para a China.
Com o veto do Ibama, a SAM reformulou o projeto, que hoje se chama Bloco 8, retirando o mineroduto da proposta. O mineroduto, no entanto, ainda tem previsão de ser construído e de acordo com o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) do Bloco 8, por uma “empresa independente”. Porém, movimentos sociais denunciam que a empresa encarregada da construção do mineroduto, Lotus Brasil Comércio e Logística LTDA, é sócia da SAM.
O desmembramento do projeto configuraria, então, uma estratégia da empresa para conseguir licenciamento para os dois empreendimentos, o complexo minerário e o mineroduto. Outra denúncia é de que os projetos não teriam nada de diferente do que constava no não aprovado Vale do Rio Pardo.
"A empresa reformulou esse projeto e retirou o mineroduto para licenciar a cava no governo de Minas, através da Superintendência de Projetos Prioritários [SUPPRI], e deixar o mineroduto para o Ibama. Como o mineroduto passa por dois estados [Minas/Bahia], só poderia ser licenciado pelo Ibama, que é um órgão federal", explica Felipe Soares, do Movimento dos Atingidos Por Barragens (MAB).
Felipe esclarece que se a cava conquista o licenciamento, a construção do mineroduto se torna indispensável. "Assim eles pressionam o Ibama, porque depois da cava é preciso escoar o minério de alguma forma, e a forma pensada por eles é o mineroduto".
Números do Bloco 8 e Vale do Rio Pardo
O Bloco 8 construiria a maior barragem de rejeitos de todo o Brasil e uma das maiores da América Latina. O projeto estará localizado nos municípios de Grão Mogol, Padre Carvalho, Fruta de Leite e Josenópolis. Segundo estudo do MAB e da Comissão Pastoral da Terra (CPT-MG), seriam 2596 hectares de barragem e aproximadamente 1,5 bilhão de toneladas de rejeito de minério armazenadas. Já o mineroduto só perderia em extensão para o maior do mundo, o Minas-Rio da Anglo American, que tem 529 km. Além disso, o complexo minerário consumiria 6,2 milhões de litros de água por hora na região, que sofre com a seca.
A Sul Americana de Metais já possui uma outorga – ou seja, o direito de uso – da Agência Nacional das Águas (ANA) que lhe permite retirar 54 milhões de m³ de água por ano da barragem de Igarapé, construída no rio Jequitinhonha, para utilizar no projeto. Essa quantidade seria suficiente para abastecer por dois anos a cidade mineira de Montes Claros, onde moram mais de 400 mil pessoas.
"As comunidades do Vale das Cancelas vivem um problema sério de acesso à água, até para o consumo. E a empresa está falando para o povo que a mineração vai proporcionar água contra a seca. Eles não esclarecem pra população qual o objetivo real desse projeto. A única coisa que consta no documento é que parte da água vai ser destinada ao governo e caberá ao Estado decidir se vai usar para o abastecimento dos habitantes ou não”, pontua Felipe.
Impactos ambientais e sociais
A pesquisa da CPT e do MAB estima que a barragem seria construída por cima de nascentes que desaguam em córregos importantes da região, afluentes do rio Vacaria, que desemboca no rio Jequitinhonha. Alguns locais seriam alagados, fazendo com que as comunidades fiquem isoladas ou até deixem de existir.
Demais efeitos seriam a destruição do cerrado nativo (vegetação já comprometida pelo plantio de eucalipto); mudança nos modos de vida e vínculos sociais da população; subordinação da economia local; aumento nos casos de violência contra a mulher devido à grande migração de homens para o território; muita poeira e barulho decorrentes do funcionamento da mina 24h por dia; entre outros.
Empresa não dialogou com população
Apesar do alto número de consequências, a SAM não teria discutido o projeto com nenhuma das comunidades afetadas, como conta o gerazeiro Adair Pereira de Almeida. Aos 45 anos, ele integra o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos de Minas Gerais (PPDDH-MG) por se posicionar contra mineradoras, grileiros e empresas de eucalipto que desmatam a natureza.
“A gente quer e deve ser consultado. A empresa está desrespeitando a lei. A comunidade tem que participar do planejamento e, se é desenvolvimento, queremos saber pra quê e pra quem”, diz. Ele conta que os atingidos já realizaram diversas manifestações, audiências públicas na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) e Senado Federal e acionaram a Organização das Nações Unidas (ONU). “Será que o Brasil não está precisando desse minério? Será que não existe outra fonte de desenvolvimento que possa ser sustentável?”, questiona o gerazeiro, que “mata um leão por dia para continuar vivo”.
Direito de consulta
A empresa fere a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), adotada no Brasil e que trata dos direitos dos povos indígenas e tribais (quilombolas, gerazeiros, pescadores e mais).
A advogada popular do coletivo Margarida Alves Layza Queiroz Santos ressalta que a SAM tinha o dever de ter consultado as famílias quando estava pensando na possibilidade do projeto. “Consta na convenção que quando existir uma medida legislativa ou administrativa que possa atingir esses povos, eles têm o direito à consulta. A consulta precisa ser feita de boa fé, de forma prévia, livre e informada. É isso que garante participação. É uma interlocução entre Estado e comunidades, possibilitando que elas participem do processo de construção daquela medida".
O objetivo, segundo a advogada, é chegar a um denominador comum em relação ao empreendimento, mas desde que a população esteja 100% esclarecida sobre todos os desdobramentos e efeitos do projeto.
Em que pé está?
O projeto já se encontra em fase de licenciamento ambiental. A análise foi pausada pela ocorrência do crime da Vale em Brumadinho, no dia 25 de janeiro deste ano.
Movimentos e população aguardam uma audiência pública que foi aprovada para debater os assuntos com a empresa responsável. A reunião ainda não tem data definida.
O que a SAM diz
Em nota, a empresa informou que se comunica com as comunidades. "Estamos constantemente em contato com cada uma das pessoas e famílias envolvidas no processo. Várias reuniões foram realizadas e continuarão a acontecer considerando e respeitando o direito à informação e à consulta prévia". A instituição declara que o empreendimento "transformará de maneira muito positiva toda a região". Questionada sobre ser sócia da Lotus Brasil, a organização ressaltou se tratar de uma "empresa independente".
Edição: Elis Almeida