Discurso atacou a imprensa livre e desprezou o conhecimento científico
Não existe nada mais difícil de definir do que o tempo. Talvez por isso a história das ideias tenha criado duas metáforas para tentar enfrentar o tema. E não se trata de concepções científicas antagônicas, mas de modos de ver, de concepções de mundo, de um saber construído pela longa vida de diferentes civilizações.
Para parte das pessoas, o tempo deve ser compreendido como uma seta, que parte de uma origem desconhecida e deixa ao homem a responsabilidade por sua trajetória. A seta do tempo aponta para uma sequência de acontecimentos únicos, que não se repetem. O conjunto desses momentos é o que chamamos de história. Há uma direção no tempo.
Outra porção da humanidade concebe o tempo como um ciclo de repetições sem fim. Nesse caso, os acontecimentos não têm sentido em si, são apenas variações de algo sempre presente, que acaba por configurar uma visão estática da vida e do mundo. Tudo faria parte de uma grande ordem, que se afirma pela eterna repetição dos mesmos acontecimentos. O tempo segue regras imutáveis.
Como se vê, é um grande problema filosófico, mas que se revela, na prática, como uma maneira de se portar no mundo. Para quem acredita que o tempo nos obriga à responsabilidade de evoluir, a ação humana deve ser sempre transformadora. Temos o dever de melhorar nossa realidade, para todos. Para quem cultua o ciclo de um eterno retorno, a finalidade da vida é confirmar uma visão revelada do universo, ainda que para poucos.
A seta do tempo dá a direção da história como criação do novo; o ciclo do tempo consagra o fundamentalismo do mesmo. De certa maneira, essa chave ajuda a entender o atual momento político brasileiro e sua expressão rancorosa, inculta e mentirosa apresentada durante a abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas pelo presidente Bolsonaro. Do começo ao fim, o que se ouviu foi uma negação da história, do conhecimento e da verdade.
O discurso afrontou fatos históricos, como a presença hedionda de uma ditadura militar violenta no país nos idos de 1964. Negou fatos científicos inquestionáveis, como a devastação da Amazônia e impacto sobre o clima. Desafiou o conhecimento antropológico, com uma visão equivocada e maliciosa da presença e dos direitos dos povos originários.
E seguiu seu périplo anticivilizatório. Instigou visões ultrapassadas de relações internacionais, ultrajando a colaboração de Cuba com a saúde pública brasileira. Evidenciou desconhecimento político na concepção desinformada das ideias socialistas. Chegou a formular um pedido de reação por parte de acólitos violentos ao devaneio conspiratório da união das esquerdas no continente.
Atacou a imprensa livre, desprezou o conhecimento científico, ofendeu o esforço de organizações humanitárias. Despejou acusações a nações com as quais o país tem alianças históricas, sem a coragem de nomeá-las, mas com atitude covardemente ofensiva. Fechou portas para diálogos comerciais de alto nível, embora tenha proferido em tom constrangido a cartilha de um liberalismo pragmático, mas inconvincente.
Com vários momentos votados apenas para sua torcida e para dar conta de questões internas e menores, que não tinham lugar naquela ocasião, o presidente finalmente deu ao mundo a certeza que faltava para ser classificado como o governante mais radicalmente de extrema direita do mundo. A partir de agora, não há motivo para evitar o uso de definições exatas como fascismo e neofascismo. É só questão de honestidade intelectual.
Não bastasse errar no mundo dos homens, lançou mão de Deus para fundamentar seu impulso ao ódio e à divisão.
Tudo isso parece confirmar a visão de tempo como um ciclo de repetições que não se quer romper. O passado não é passado, como se percebe na retomada do golpe de 1964 e de outras experiências ditatoriais do período como resultado de vitórias contra ameaças ideológicas. Que seguem no presente de sua paranoia. Trata-se de algo de imenso significado: nunca se viu no plenário da ONU uma defesa tão aberta e orgulhosa da ditadura e da violência. Foi um momento de vergonha.
A concepção estática e repetitiva dos defensores do ciclo do tempo, própria das visões de mundo fundamentalistas, explica, entre outras questões, o arsenal violento de ações contra os dois setores mais intrinsicamente ligados à renovação: o conhecimento e a cultura. É próprio da vertente marcada pela revelação religiosa como fonte de saber, se sentir ameaçada pela força transformadora do saber, pelo desafio intelectual da arte e pela beleza da criação que rompe com padrões.
Depois de dezenas de atitudes ignaras, de confronto com intelectuais, professores e artistas, de ameaças de destruição da educação pública, de constrangimento da liberdade de cátedra e da pesquisa científica, chegou-se ao ponto de confrontar os melhores de nós. Ao desferir ignomínias contra Fernanda Montenegro e Chico Buarque, o atual governo arranhou não apenas o orgulho ser brasileiro, mas o de habitar o mesmo tempo histórico que vê conviver a graça e a desonra.
Os pensadores mais consistentes tendem a defender que a seta e o ciclo do tempo não devem ser vistos como inimigos, mas como visões complementares, nas quais o limite de uma é superado pelas intuições do outro lado. No entanto, são claros em afirmar que a visão cíclica é própria de civilizações mais arcaicas, que tinham temor com as possibilidades de transformação de suas visões de mundo. Já a seta do tempo seria uma imagem própria das chamadas civilizações históricas.
Talvez o desafio contemporâneo esteja em reafirmar a visão do tempo como renovada criação histórica, que nos responsabiliza por transformações que façam a vida da humanidade mais livre, justa e fraterna. A seta do tempo, no entanto, gira como o ponteiro livre de uma bússola, para todas as direções, impelida pela imantação da luta de classes.
Se temos algo a resgatar da visão conservadora e cíclica do tempo é exatamente a crença de que não há nada de novo sob o Sol. As ameaças fascistas, que hoje ocupam governos e tribunas de organizações internacionais, fazem parte do pior do homem e não serão extintas com o passar dos anos. Precisamos estar alertas para não permitir que ganhem nova oportunidade na história.
Edição: Elis Almeida