Em nossa história, a afirmação sobre o Estado ser o agente que decide quem pode viver e quem pode morrer é bem atual. Nela está a opressão e o derramamento de sangue de corpos negros e pobres, escritos pelas marcas profundas do racismo estrutural da sociedade brasileira. Isso porque a população negra, além de ter seus direitos retirados em grande escala, segue sendo a que mais morre no Brasil.
No Brasil, as instituições públicas responsáveis por fazer a “mediação da segurança”, as polícias militar e civil, nunca sofreram reformas relevantes e reagem abruptamente ao pedido de desmilitarização. É importante lembrar que na base de sua estrutura estão os fósseis do sistema escravocrata, que nos legou essa política de continuidade do controle social sobre os corpos negros. Esse sistema depois foi sedimentado pela ditadura, edificando assim uma sociedade militarizada e do “cidadão de bem”.
Isso explica porque a única política pública que chegou à população negra brasileira foi via segurança pública. A ausência de acesso ao trabalho, à educação, saúde e outros direitos sociais e a criminalização das práticas sócio culturais perpetuam uma política de biopoder que se aplica nas estruturas de manicômios e prisões. Há um limite para pensar a segurança pública como uma questão não apenas da polícia, mas, sobretudo, uma política pública efetiva, de afirmação de direitos, e não da violação.
Na atual conjuntura brasileira, em cenário pós golpe e com Bolsonaro na presidência, lembrar do que ocorreu naquele 2 de outubro de 1992 é fundamental e necessário, uma vez que somos um país sem memória e com pouca justiça. O Estado brasileiro pouco se responsabiliza por processos que visam à prevenção e ao combate à tortura nos estabelecimentos e unidades onde se encontram pessoas privadas de liberdade, e pouco ou nada faz para promover seus direitos e interesses.
Carandiru na memória
Conhecido internacionalmente como o Massacre do Carandiru, há 27 anos o pavilhão nove do maior presídio da América Latina foi invadido pela tropa de choque da Polícia Militar. A ação foi comandada pelo coronel Ubiratan Guimarães que, após consentimento do então governador Luiz Antônio Fleury e do ex-secretário de Segurança Pública Pedro Franco de Campos, executou 111 presos. A perícia concluiu que 70% dos tiros foram dirigidos à cabeça e ao tórax das vítimas. Para escapar com vida, presos se misturaram aos colegas mortos. Dos cerca de oito mil detentos no Centro Penitenciário, 2,5 mil concentravam-se no Pavilhão 9.
Partindo da necessidade de contar a realidade de dentro, a célebre canção “Diário de um detento” do grupo de rap Racionais MC’s, retrata o cenário penitenciário brasileiro da época e denuncia a impunidade certeira. “Cadáveres no poço, no pátio interno/ Adolf Hitler sorri no inferno! O Robocop do governo é frio, não sente pena/ Só ódio e ri como a hiena/ Ratatatá, Fleury e sua gangue vão nadar numa piscina de sangue/ Mas quem vai acreditar no meu depoimento? Dia 3 de outubro, diário de um detento”.
Sentido estratégico da impunidade
E é exatamente esse culto à desmemória que nos gerou uma democracia pela metade e consequentemente um sentido estratégico de impunidade. A demora do processo judicial e a provável impunidade de todos os agentes públicos envolvidos evidenciaram como a violência do Estado goza de amplo apoio social. Resultado disso é que entre 2013 e 2014, após muitas mobilizações populares e um longo processo, 74 policiais militares envolvidos na operação foram condenados pelos jurados, porém o Tribunal de Justiça anulou as decisões dos jurados e recomeçou do zero. Ali, mais uma vez, a tradição dos oprimidos nos ensina que o que é exceção na verdade vira regra.
Trazer o passado à tona é garantir que ele não siga sendo enterrado sem ser revelado, questionado, discutido, para que não ocorra novamente. Principalmente, quando falamos de uma realidade na qual a nossa frágil ‘democracia’ encontra-se depredada e sufocada por essa estrutura que diariamente se manifesta com repressão, tortura, execuções e violações de direitos humanos.
Ao contrário dos outros países, em nome de uma suposta boa e equilibrada governabilidade, a nossa redemocratização não garantiu que os quadros do Estado fossem punidos pelas violências durante a ditadura civil-militar. O Estado que deve nos proteger vira algoz. É assim que a dor do genocídio da população negra, pobre e periférica vira sinfonia que ecoa diariamente no choro da mãe preta ao ver mais um corpo negro caído no chão. Vidas negras importam, e essa regra arbitrária da violência sobre esses corpos não deve ser naturalizada.
Genocídio da população negra
Dado o processo histórico, não é de estranhar que a população negra esteja no centro do projeto de extermínio. Entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%. No mesmo período, a taxa entre os não negros teve uma redução de 6,8%. Cabe também comentar que a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não negras. Informações e fatos revelam um aumento sobre a população com a faixa etária entre 15 a 29 anos, nas regiões Nordeste e Norte, destacando que, entre homens de 15 a 19 anos, os homicídios são a causa da morte de 56,5%.
Segundo relatório da ONG Grupo Gay da Bahia (GGB), em 2017 a média de assassinatos registrados para população LGBT foi de 445 pessoas. No ano de 2016 foram 343 assassinatos, equivalente a 0,95 morte por dia, perfazendo aumento de 30%. É assim que as colunas da opressão persistem impunes ao tempo.
Em 2017, chegamos com o registro de maior número de assassinatos no campo dos últimos 14 anos. Cerca de 71 pessoas foram assassinadas em conflitos agrários. Dez a mais do que em 2016 e o maior número registrado desde 2003, quando se computaram 73 vítimas. As comunidades quilombolas crescem 350% em um ano no Brasil e o número de assassinatos saltou de quatro para 18 em um ano, de 2016 a 2017.
O Brasil é o terceiro país com mais presos no mundo e o terceiro em taxa de ocupação das cadeias (188,2%). Esses dados refletem uma Política de Segurança Pública irresponsável, que aposta cada vez mais no encarceramento e na violência contra detentos/as, e não em acesso à educação, ao esporte, lazer, cultura e trabalho para uma parcela da população, em um país que sempre legitimou a desumanização dos seus corpos, a escravidão e a barbárie institucional.
Queimar e implodir a história é uma forma de manutenção da nossa desmemória. A ditadura também legou a ausência de memória à população negra e um apagamento do racismo pela Lei Nacional de Segurança como se de fato vivêssemos o “mito da democracia racial”. Para isso, neutralizar o movimento negro, bem como os conflitos e antagonismos apontados por ele, foi necessário, uma vez que o movimento negro desafiava as bases do sistema social vigente.
No caso de Carandiru, esse processo de apagamento iniciou-se com a desativação do complexo em setembro de 2002. Em dezembro do mesmo ano, três pavilhões foram implodidos e outros dois destruídos posteriormente. A Feminina Santana foi mantida, além de dois pavilhões que foram usados para outro fim. Porém, implodir não fez desaparecer os problemas do sistema prisional de São Paulo.
Assim como Caetano e Gil na canção “Haiti” se referiram ao “silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina de 111 presos indefesos”, concluindo que “presos são quase todos pretos (…)”, no estado que tem a maior população carcerária do país, cerca de 240 mil presos, o silêncio sorridente continua estampado na face dos “homens de bem” nos dias de hoje… Os mesmos que usam a cultura de impunidade, medo e desmemória para reproduzirem as heranças coloniais e ditatoriais nas instituições policiais. Quantos outros Carandirus precisarão vir? Quanto custa o silêncio da desmemória?
*Iris Pacheco é dirigente nacional do setor de comunicação do MST.
Edição: Joana Tavares