descobri um restaurante pertinho de casa, vizinho da loja em que compro ração e areia pro meu gato, e fui nele não por recomendação de alguém, mas por preguiça. agora volto por dois outros pecados capitais, cobiça e gula, contidos numa mesma tentação: feijão – e eu sou capaz de coisas indizíveis por um bom feijão.
o estabelecimento é simples, limpo, barato (14, 15 dinheiros por um prato capaz de satisfazer um viking com bons modos) e – hosanas nas alturas – silencioso.
fui lá ontem, fiz um prato bem bonito de arroz e feijão, ao qual acrescentei 5 gotas de pimenta no feijão e 13 segundos de um azeite do bom por sobre o arroz, e pronto.
enquanto pesava o prato, o cozinheiro se chegou:
- senhor, servimos saladas e carnes também, o senhor viu?
- vi, mas tudo é nada perto desse teu feijão.
- obrigado, mas o senhor já provou o frango que faço na cachaça e com redução de frutas vermelhas? povo gosta bem.
- fico feliz pelo povo, por você, mas hoje eu tô pela ampliação do arroz com feijão, que, insisto, é um colosso, uma bondade mesmo.
- ok - respondeu, mas não sem indisfarçável contrariedade.
bati o prato, paguei, e, encafifado se o camarada das caçarolas acreditara, mesmo, que eu estava satisfeitíssimo, resolvi ter um particular com ele, reforçando a satisfação com um argumento aprendido com minha vó napolitana, que cozinhava bem à beça:
- meu camarada, minha vó paterna, que me ensinou a comer, dizia o seguinte: "quer saber se uma pessoa cozinha bem? prove o arroz com feijão dela. não tem muito recurso: é tempero, fogo certo e tempo exato de preparo e cozimento. se acertar isso, é porque cozinha muito bem qualquer coisa". é teu caso, batuta. é a terceira vez que venho aqui pelo teu arroz com feijão. parabéns, e muito obrigado.
- ok, senhor. vou fazer de conta que o senhor tá sendo sincero, mas vou torcer pro senhor provar as outras coisas que faço. cozinha chic, sabe?
- ok, chef.
essa repulsiva epidemia gourmet e essa abominável histeria de reality shows com e para "chefs" estão destruindo, respectivamente, a essência das comidas (e do comer) e a autoestima de grandes e naturais talentos.
Zé Carota é jornalista e escritor.
Edição: Joana Tavares